Há um ano, a amazonense Nayla Victoria Rêgo da Silva Pinto, 21 anos, de Parintins, recebeu uma das notícias mais difíceis da sua vida: o noivo, o médico veterinário Lúcio Kimura, 36, não resistiu às complicações da covid. Na época, um dos primeiros sintomas foi a falta de ar. Apesar de estar aparentemente bem, exames mostraram que ele já estava com 90% do pulmão comprometido quando foi internado.
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Poucos dias depois, infelizmente, Lúcio precisou ser entubado. "O dia em que recebi a notícia do falecimento foi muito chocante. Não só porque era o falecimento da pessoa que estava comigo, que eu amo até hoje, mas pela situação. Ele havia acordado [do coma induzido] num domingo e faleceu na terça-feira, dia 27 de outubro de 2020. Ele tinha recebido as visitas da mãe e da irmã, e elas falaram com ele. No entanto, Lúcio sofreu duas paradas cardiorespiratórias súbitas. Na primeira, conseguiram reverter, mas, na segunda, não mais", lembrou Nayla, em entrevista exclusiva à CRESCER.
Ainda vivenciando o luto, seis meses depois, ela teve uma grande surpresa: descobriu que estava grávida, e já na reta final, de 37 semanas, e precisava fazer uma cesárea de emergência. Apesar do susto, o bebê nasceu saudável, recebeu o nome pai — Lucio — e chegou para ressignificar a vida da família. "Lúcio e eu planejávamos ter filho, mas mais para frente. Ele me pedia todos os meses, meu pai pediu várias vezes por um neto, mas eu não tinha pressa", lembra. "A reação dos nossos familiares foi boa, de surpresa, até por ter sido, coincidentemente, no dia em completava seis meses do falecimento de Lúcio. Ressignificou aquela data que, para todos nós, era muito dolorida e marcante", disse.
Hoje, o pequeno Lucio está prestes a completar seis meses. "Tem momentos difíceis, solitários, cansativos e dolorosos. Mas recebo muita ajuda, principalmente da minha família. Tenho uma rede de apoio ampla, meu filho é saudável e eu sou muita grata à Deus e à família por todo suporte que recebo, e ao Lúcio que, mesmo longe, em alguns momentos, sinto que está presente comigo. Essa noite, inclusive, após uma mamada, senti que ele estava perto por algum motivo. Saí para lavar a mamadeira e, quando entrei no quarto, eu vi algo no berço; eu senti ele. Em outros momentos, também costumo sentir a presença dele. Percebo os cuidados que ele tem conosco através de sonhos e até atitudes de outras pessoas", completou.
A experiência de Nayla, apesar de dolorosa, não é única na pandemia. Segundo a Associação Nacional dos Registradores de Pessoas Naturais (Arpen-Brasil), que representa os Cartórios de Registro Civil do Brasil, pelo menos 223 pais faleceram antes do nascimento de seus filhos, entre 16 de março de 2020 e 24 de setembro deste ano. O levantamento, feito com base no cruzamento entre os CPFs dos pais nos registros de nascimentos e de óbitos feitos nos 7.645 Cartórios de Registro Civil do país, aponta que a maioria dos óbitos foi registrado em São Paulo, seguido pelo no Rio de Janeiro, Minas Gerais, Parana e Santa Catarina. Segundo a Arpen, não é possível afirmar quantos destes 223 são homens ou mulheres que foram à óbito pouco antes do parto.
Para a neuropsicóloga Deborah Moss, mestre em Psicologia do Desenvolvimento (USP), de São Paulo, viver a alegria do nascimernto de uma vida e o luto de uma morte simultaneamente exige muito do emocional de quem sobreviveu. "Lidar com tantas emoções é um desafio enorme, além de todas as questões futuras, como as preocupações com a criação e o questionamento do filho sobre a falta daquela pessoa. Então, é importante que quem ficou não se sinta sozinho, que tenha outras parcerias para dar amparo e suporte e, assim, proporcionar um ambiente para que possa ter emocional suficiente para cuidar e educar esse filho que nasce órfão. É fundamental uma rede de apoio tanto nos cuidados com o bebê, quanto nos cuidados com o genitor para lidar com essa perda", orientou. "E como são muitos casos, reforço também, a importância da busca de um grupo de apoio formado por outras pessoas que estão vivendo o mesmo luto", completou a neuropsicóloga.
O psiquiatra e psicoterapeuta Wimer Bottura, presidente do Comitê de Adolescência da Associação Paulista de Medicina, explica que perder um companheiro em um momento de pandemia pode causar um impacto "acima da média", em comparação com outras circunstâncias. "Os sobreviventes ficam com uma sensação de vulnerabilidade brutal, pois não sabem se irão sobreviver, se as pessoas próximas, que fazem parte da rede de apoio, também passarão imunes ao vírus. Então, há uma angústia muito grande e a sensação de perda é muito maior pela fragilidade do momento", destaca.
"Um ponto importante é que a tristeza é inevitável, e o único remédio para ela é chorar, compartilhar com pessoas que podem lhe dar apoio. Isso é fundamental. A criança não vai ter contato com o pai que se foi, então, não terá consciencia da perda direta. O que ela terá contato é com a perda de forma indireta, vinda do genitor que ficou. O que temos visto e devemos evitar é atribuir a culpa da morte à alguém, pois, além da tristeza, isso gera revolta e indignação, e a criança que cresce nesse meio pode se desenvolver com um certo grau de hostilidade. Estamos diante de um fenômeno que atingiu o mundo inteiro. Portanto, associar tristeza ao ódio será ainda mais prejudicial à essas crianças e seus genitores", afirmou.
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No total, ainda segundo o levantamento da Arpen-Brasil, ao menos 12.211 crianças de até seis anos de idade ficaram órfãos de um dos pais, vítimas da covid-19, no Brasil. Destes, 25,6% não tinham completado um ano. Já 18,2% tinham um ano de idade, 18,2% dois anos de idade, 14,5% três anos, 11,4% 4 anos, 7,8% 5 anos e 2,5% 6 anos. São Paulo, Goiás, Rio de Janeiro, Ceará e Paraná foram os estados que mais registraram óbitos de pais com filhos nesta idade.
“A base de dados dos Cartórios tem auxiliado constantemente os Poderes Públicos, os
laboratórios e os institutos de pesquisas a dimensionar o tamanho da covid-19 em nosso
país, e o fato de termos esta parceria com a Receita Federal para a emissão do CPF na
certidão de nascimento dos recém-nascidos nos permitiu chegar a este número parcial,
mas já impactante”, comentou Gustavo Renato Fiscarelli, presidente da Arpen-Brasil.
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