Vivíamos correndo. Reclamávamos de não ter tempo com nossos filhos. Veio a pandemia, passamos a ficar muito mais em casa, juntos. Mas isso não quis (e não quer) dizer só brincadeiras no chão da sala e dormir abraçadinhos. Infelizmente, essa convivência forçada e todo o pacote da pandemia – home office com filhos, aulas online, medo de pegar a doença, dificuldades financeiras – trouxeram muita irritabilidade, cansaço, frustração. E isso tudo gerou o quê? Estresse nas relações, inclusive entre as crianças e seus pais. Retratamos o cenário que você tem vivido?
Infelizmente, com esse combo, vimos o número de casos de violência contra as crianças aumentar. Uma revisão de mais de 30 estudos publicados sobre o tema, feita por pesquisadores da Universidade Nova Inglaterra (Austrália), mostrou que circunstâncias trazidas pelo novo coronavírus contribuem para o agravamento de violência praticada por parceiros e abuso infantil.
De acordo com os autores, os fatores de maior gatilho para elevar a violência intrafamiliar durante a pandemia são o aumento do estresse e de traumas, dificuldades econômicas, o isolamento imposto e a diminuição do acesso à comunidade e à rede de apoio. Eles ressaltam, ainda, que a pandemia em si não causa a hostilidade familiar, mas cria um ambiente para quem já tem predisposição, manipular a situação e maximizar as oportunidades de coerção e controle, aumentando o medo e a ansiedade de suas vítimas.
Para além dos agressores que se valem do momento para “colocar em prática” a violência, é fato que a sobrecarga emocional afetou todos nós. Isso tudo acontece também pela exaustão emocional que se instalou. Uma pesquisa feita com 183 famílias pela Universidade Estadual do Colorado (EUA) revelou que pelo menos 85% dos pais estão mais estressados agora do que antes do isolamento causado pela pandemia da covid-19. Quando se trata das mulheres – mais sobrecarregadas mesmo antes do novo coronavírus dar as caras –, o esgotamento é ainda maior.
Segundo um estudo britânico feito pela comunidade online Mothersphere, uma em cada três mães afirma que as restrições impostas pela covid-19 a levaram ao limite. “As emoções dos pais estão alteradas por conta da pandemia. Estamos desde março do ano passado enclausurados, e o equilíbrio emocional tem a ver também com a liberdade de ir e vir, com a possibilidade de socializar, de encontrar, de receber toque, abraço, beijo. E todas as condutas protetoras e responsáveis, no momento da pandemia, pressionam, sim, a saúde mental. É inevitável”, afirma o psicólogo Alexandre Coimbra Amaral, colunista da CRESCER.
Nada disso foi escolha nossa e, infelizmente, não temos controle sobre o vírus. Então, o que podemos fazer para não nos deixar levar por esse estresse que acaba afetando a relação com nossos filhos? O que muitos especialistas vêm apontando como saída é educar com gentileza – sem esquecer da firmeza.
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A psicóloga Nanda Perim, autora do recém-lançado "Educar Sem Pirar" (Editora BestSeller), é um dos experts que fazem tal recomendação. Em seu livro, ela discute sobre a inteligência parental, que tem três pilares: conhecimento, autoconhecimento e relacionamento. “Durante esse período de pandemia, fica muito mais difícil se relacionar de forma inteligente como pais, quando seu corpo não está dando conta nem de si mesmo. Mas acredito que, por mais que a gente não consiga fazer tudo com excelência, há vários fatores que ajudam a melhorar a situação, como ter conhecimento, entender a fase do desenvolvimento que a sua criança está, saber das limitações e dificuldades dela, conhecer a si mesmo, conhecer seus gatilhos e dificuldades, saber o que o acalma e ter um relacionamento com essa criança em que você busque ao máximo o respeito mútuo, que você peça desculpa toda vez que errar”, explica.
É o que vem buscando fazer o empresário Julius Nunes, 40 anos, pai de Catherine, 5 anos. “Temos tentado atuar com serenidade, compreendendo que todos, inclusive ela, ainda está se adaptando a este momento atípico. Às vezes, um simples abraço em uma hora de nervosismo já resolve o problema”, conta.
Quando Julius diz que ele e a esposa compreenderam que a filha também está se adaptando, faz todo o sentido. Os pequenos não têm conta para pagar nem medo de perder o emprego, mas estão sofrendo, sim. E isso se reflete no comportamento, como mostrou um estudo da Universidade de Bristol (Inglaterra).
Segundo a pesquisa, crianças de 4 a 12 anos tiveram mais crises de birra e dificuldades emocionais durante a quarentena. “É esperado o aumento dos ‘maus comportamentos’, pois foram reduzidos o brincar livre, as experiências na escola, as relações interpessoais. Além disso, pais e cuidadores estão mais estressados, impacientes e, consequentemente, regulando pior os sentimentos das crianças”, explica a pediatra Juliana Alfano, do Hospital Infantil Sabará, em São Paulo (SP).
Em entrevista exclusiva à CRESCER, a pesquisadora argentina Laura Gutman deixou sua mensagem sobre como lidar com nossos sentimentos nesses tempos de distanciamento social:
“A pandemia não altera a capacidade que nós, adultos, temos de nos investigar, de ordenar a nossa realidade emocional (que se formou quando éramos crianças, quando não havia pandemia). Nem altera a inteligência emocional que podemos disponibilizar, quando compreendemos de onde viemos e decidimos mudar a favor de nossos filhos. A biografia humana é semelhante a um sistema terapêutico: podemos abordá-la a qualquer momento de nossas vidas. Mas, ao contrário de outras terapias, não interpretamos, não julgamos, mas observamos nossa realidade atual, levando em consideração o ponto de vista do menino ou da menina que fomos e entendendo quais mecanismos usamos para sobreviver a um coração partido, desamparo, à violência ou às exigências que temos vivido. Em seguida, é preciso registrar como esses mecanismos se tornaram um sistema automático de relacionamento e de convivência, partindo do pressuposto de que temos de continuar a nos salvar de abusos, quando na verdade ninguém mais pode nos prejudicar.”
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from Crescer https://revistacrescer.globo.com/Educacao-Comportamento/noticia/2021/10/pandemia-como-nao-deixar-o-estresse-afetar-o-dia-dia-com-os-filhos.html