Tonica pegou seu lápis preferido. Lápis de três cores: azul, preto e amarelo. De ponta grossa. Que é seu preferido por ter um traço que faz com que tudo o que escreva seja bem claro e firme. Esse lápis é um resquício da sua infância que só agora começava a ir embora.
Com 15 anos, Tonica tinha dificuldade de se desapegar dos objetos. Talvez por isso buscou um caderno antigo da sua mãe e, desrespeitando os limites que se têm com um objeto alheio, resolveu interferir.
No verso da capa do caderno antigo da sua mãe, escreveu: Era uma vez uma princesa…
Já arrependida, arrastou a cadeira em que estava sentada para o outro canto do seu quarto, indo buscar uma borracha. Nesse movimento, o pé da cadeira ficou preso em uma fenda do chão de madeira meio envelhecido que dominava toda a sua casa, e Tonica foi ao chão.
Caiu de lado, meio torta, com o rosto amassado entre o tapete e o piso. E nada fez. Não chorou, não gritou, não chamou o pai e nem a mãe.
Ficou lá... Quieta...
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Tonica pensou: “Por que as princesas não caem assim? Por que, quando elas caem, é sempre de um jeito que mesmo atrapalhado me parece bonito, perfeito e deixa o erro, que é uma queda, de um jeito que nem me dá vontade de rir? Só consigo olhar aquela queda e pensar: ‘xiii, ela caiu, tomara que o príncipe chegue rapidamente, levante a pobre princesa e resolva logo a vida dela, levando-a para o castelo e fazendo com que seja feliz pra sempre’”.
Para acabar seu devaneio, pensou ainda: “Minha queda é tão diferente. Eu tô aqui, com o rosto colado no chão, a perna torta e a camisa desarrumada, mostrando meu umbigo. Nunca vi uma camisa desarrumada de uma princesa mostrando seu umbigo. Como será o umbigo de uma princesa? Princesa usa camisa? Meu Deus! Princesa tem umbigo ou será que ela é igual à Barbie, sem umbigo e sem pepeca?”.
Pois é… Ainda pepeca. Mas sabe que tem de começar a chamar sua parte íntima por um nome mais adequado à sua idade.
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Tonica levantou, escondeu o umbigo, pegou a borracha, puxou a capa do caderno, deitou no chão, apagou o Era uma vez e recomeçou a escrita com uma nova frase. Desta vez, ela escreveu: Hoje uma vez numa bela cidade do Brasil vivia Sthefane Kate. Ela era muito bonita. Bonita mesmo, sabe? Não vou descrever, porque quando falamos bonita, já sabemos o que uma pessoa precisa ter para ser bonita.
SK andava com um vestido cor-de-rosa, de três anáguas, uma dúzia de babados e manga bufante.
Faz muito calor no Brasil, mas Sthefane Kate nem ligava, corria pelas dunas de areia com seu vestido como se nos Alpes Suíços estivesse. Pensava no quanto sofria nas mãos da sua madrasta má, que a deixava trancada, isolada, forçando-a a ler e tendo apenas como amigos pequenos duendes que haviam se mudado da Suécia para sua vizinhança, e pequenos pássaros de cor azul-bebê e canto mavioso.
Continua na edição de abril, já nas bancas.
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