Tuesday, May 21, 2019

Desabafo: "Se tenho um trabalho, tenho socialmente um valor. Porque esse, o de maternar, ainda é insistentemente não visto"

Ana Lígia e o filho, Benjamin (Foto: Reprodução Facebook)

 

A maternidade nunca chega sozinha. Ela vem acompanhada de mudanças físicas,  psicológicas e, na maioria das vezes, profissionais. Nem sempre as mulheres conseguem dar continuidade as suas carreiras - seja por falta de tempo, apoio ou compreensão. A jornalista, especialista em moda e mãe, Ana Lígia Vasconcellos Farath, 36, de Ribeirão Preto, São Paulo, que o diga.

Há um ano e meio, seu primeiro filho, Benjamin, chegou ao mundo. "Ele veio no susto, mas deu tudo certo. O trabalho é até maior do que eu poderia imaginar, mas descobri um lado da maternidade com o qual eu não contava: me quebrei, renasci outra, mais forte e segura, e sou nutrida por um amor gigante, um aprendizado constante, e fui obrigada a parar e viver num outro ritmo, que agora vejo como mais equilibrado, natural, e também dou ainda mais valor ao presente e ao que eu tenho", diz.

Mas ela também descobriu uma sociedade despreparada para entender essa nova fase da mulher. "Não parei completamente de trabalhar, não consigo. Tinha um negócio de acessórios, que mantenho com pedidos por encomenda. Estou envolvida com algumas amigas numa segunda exposição, acabo de concluir um curso de revisão de texto e mantenho um perfil com receitas e troca de ideias sobre alergia alimentar à proteína do leite e a ovo (@receitalimpa). Mas como nada disso contribui de forma considerável para as finanças, estou tentando voltar ao mercado. Mas não existe, por exemplo, serviço para um revisor de livro com prazo que contemple meio período, tudo 8 horas por dia, no mínimo. E eu não tenho esse tempo agora. Então, ainda não consigo encontrar um resultado para essa equação: necessidade de gerar renda x tempo limitado para trabalhar. Desse dilema surgiu o texto (abaixo)", conta.

"Nele, divido algumas das questões que me acompanham e que podem provocar identificação em outras mulheres que são mães, também desejam retomar a carreira e descobrem que não há muito espaço para a maternidade numa sociedade tão focada no ter e no fazer, e não no ser", completa.

Mães e trabalho: eterno dilema?

Confira, portanto, o texto que a leitora Ana Lígia enviou à redação da CRESCER:

"Procura-se um trabalho de meio período para uma mulher que é mãe. Digo que tenho meio período, mas, pensando bem, o tempo que me resta livre quando meu filho vai para a escola é de três horas. Ele tem alergia alimentar, então ainda que eu quisesse dispor de comida comprada todos os dias, não poderia. Preciso cozinhar para ele. E olha que sou produtiva. Preparo cinco grupos de alimentos em uma hora. Mas isso não conta como trabalho, eu sei. Aos olhos gerais, não tem valor, por isso a sugestão de que seja remunerado parece absurda. Mas se fosse, eu não precisaria estar aqui pedindo emprego. Me bastaria maternar e incorporar todos os demais papéis criativos e executivos que vêm como pacote dessa escolha (escolha para mim, do alto do meu privilégio de branca, classe média, casada, mas tenho consciência de que a maioria das mulheres não tem essa opção).

Bom, mas eu estava dizendo que tenho três horas disponíveis, mas na verdade só tenho duas. É que quando meu filho sai para ir à escola eu aproveito para lavar roupa, arrumar a casa e ainda dedico um cadinho de tempo para organizar um armário ou gaveta, entulhados até quase não fechar depois que o bebê nasceu e tivemos de tirar, por segurança, muitos objetos de seu alcance. Sei que isso parece supérfluo, perda de tempo, para quem precisa ganhar dinheiro e complementar o orçamento familiar, mas vejo como essencial. A cada nova limpeza, impurezas acumuladas dentro de mim vão embora também. Sobra espaço, a energia circula melhor, é um grande alívio.

Como sigo à risca muitos dos preceitos da japonesa Marie Kondo, ícone da arrumação, talvez eu pudesse prestar alguns serviços assim (mas quem teria a paciência de esperar pelo resultado ao longo de semanas a fio, já que eu só poderia dispor de duas horas por dia?). Eu disse que tenho duas horas e são duas horas mesmo. Muito bem dedicadas, com toda a minha atenção, alma e sede de realizar. Mas só se não surgir nenhuma virose, o que nos últimos tempos tem sido semana sim, outra também. Porque aí, sinto informar, não teria outra pessoa para levar meu filho ao médico senão eu.

Sabe, ainda não pega bem um pai dizer no trabalho que vai passar o dia em casa monitorando o filho com febre. Mesmo que ele seja sócio da empresa. O que ele vai fazer com toda a lista de pendências a resolver? Não dá para jogar para o outro dia. Mas a lista interminável e invisível das mães dá. Sempre dá. Sabe, pensando em todas essas limitações que minha condição impõe, estou disposta a negociar. Geralmente, tenho duas horinhas à tarde livres durante a soneca do bebê. Uma eu costumo usar para pegar brinquedos, lavar louça, guardar as comidas e lavar mais roupa (ah, impressionante como o cesto nunca fica vazio!) e a outra, confesso, aproveito e descanso, numa tentativa de repor o sono – de hoje, de ontem e desse um ano e meio – perdido. 

Sei que pareço uma funcionária preguiçosa, mas não sou. Estou até disposta a abrir mão desse tempinho de descanso, deixar a louça na pia e adicionar esse período como livre para o trabalho, já que isso que eu faço em casa o dia todo nem é considerado como tal. Quem sabe assim as pessoas me tratem melhor, me olhem diferente. E eu não precise ficar justificando que 'estendi a licença-maternidade', 'desacelerei os atendimentos', 'estou estudando para voltar para a minha área'.

Pronto, se tenho um trabalho, tenho socialmente um lugar, um valor. Porque esse onde estou hoje, o de maternar, embora seja para mim o mais relevante do universo para a manutenção da sociedade (é só pensar, se todas as mulheres decidissem não ser mães o que aconteceria), ainda é insistentemente não visto. E isso cansa. Enfim, tenho mais essas duas horas livres, mas só quando meu filho chega dormindo da escola. Se algo diferente acontece, e ele desperta, aí pode ficar até o final da tarde sem dormir – e, apesar de ser muito independente para um ano e meio, esse serzinho ainda demanda minha atenção full time.

Ah, então você me pergunta por que não o coloco em escola integral, para ficar livre por mais meio período? A resposta é simples, mas sua consequência nem tanto: se estou criando o futuro, quero criá-lo de fato e não o delegar a terceiros. Quero que meu filho seja seguro para experimentar novos horizontes, ao mesmo tempo que tenha empatia pelo outro e valores sólidos, saiba qual o seu lugar no mundo e qual o seu propósito. E isso não se constrói apenas em sala de aula. Exige tempo, afeto, vínculo, presença.

Por fim, de quando meu marido chega do trabalho até meu filho ir dormir me sobra mais umas três horas, que poderia disponibilizar em meu currículo (o que já representa uma jornada de sete horas, a mesma dos jornalistas, mas se você conhecer algum jornalista que trabalhe apenas sete horas por dia me avise, por favor). Mas isso num dia ordinário. Nos extraordinários, mais frequentes do que eu gostaria, o marido atrasa, o filho não quer comer ou não dorme, e fica batendo desesperadamente na porta chamando por mim. Posso mantê-la trancada, mas já não garanto a mesma atenção, alma e sede de realizar, muito provavelmente substituídas por esgotamento físico e mental. Imagino que alguns funcionários nem se importem, na era da tecnologia, de trabalhar madrugada adentro, mas eu não posso. Nos dias em que não há febre ou dente nascendo, preciso tentar descansar, pois no dia seguinte recomeça tudo outra vez.

Por estar fora do mercado há algum tempo, não tenho grandes pretensões salariais. Ganhar igual a um colega homem já me faria satisfeita, mas entendo se optar por contratar um em vez de mim. Seria realmente muito menos complicado. De qualquer forma, agradeço a atenção. E me desculpe qualquer coisa, especialmente a sinceridade. Por muito tempo me senti defeituosa por não dar conta de tudo, até entender que não há, em geral no mundo, espaço para mulheres que são mães. Então envio essa proposta sem grandes expectativas, já achando que, se não existe trabalho para mim, talvez eu deva mesmo criar o meu próprio."



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