Dia desses...aliás, não tão dia desses assim, visto que foi naquela época em que não tínhamos medo de aglomeração e pesadelos com crises de falta de ar, eu estava passeando em um shopping com as crianças quando vi uma loja oferecendo um produto que era uma novidade para nós. A criança tinha a oportunidade de fazer o próprio brinquedo. Podia escolher a cor, o material, os olhos e sei lá mais o que. Passamos longe da loja porque, sinceramente, essa ilusão de que podemos escolher cada detalhe de quem amamos é uma cilada narcísica. Tá, era só um brinquedo, mas eu já não estava mais focada no brinquedo, mas na nossa mania obsessiva de acreditar que podemos moldar os nossos filhos de acordo com os nossos quereres e desejos.
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Nos últimos anos trabalhando com pais escutei de tudo. “Meu filho é nervoso demais, como faço para ele ficar mais calmo?”, “Minha filha é muito ansiosa, como faço para ela ser mais paciente?”, “Meu filho grita demais, como faço ele parar?”, “Minha filha chora demais, como faço ela não chorar tanto?”. A gente aprendeu que pode dizer quem os filhos são, que pode moldá-los para serem mais felizes, adequando-os com as características que julgamos essenciais para se alcançar a tal felicidade. Não podemos negar, também, que muitas vezes queremos adequá-los para sermos mais felizes – ou menos estressados. Mudar algumas características deles pode realmente facilitar as nossas vidas. E assim, gastamos uma energia imensa ao tentar encaixar os nossos filhos nas nossas idealizações.
Ah, eu também me pego fazendo isso volta e meia. Meu filho mais velho, Miguel, acorda cedo desde que chegou ao mundo. Nos seus quatro primeiros anos de vida eu tentei de tudo para que o sono chegasse a pelo menos seis e meia da manhã. Sim, quando digo cedo, estou falando de acordar às cinco, cinco e meia. Até que um dia, conversando com uma amiga, percebi que estava brigando com o que meu filho é. Eu pari um passarinho. Um madrugador. Ele acorda cedo, com o sol, e todas as minhas tentativas, rezas, choros e desesperos não mudaram esse fato. Sabe o que melhorou muito a nossa vida? Aceitar isso. Porque eu parei de me frustrar com as tentativas de “amanhã será diferente”. Passei a ver meu filho, não as minhas projeções sobre ele. E cá estamos, nos últimos 8 anos, ele dormiu até as 9:00 uma única vez. E eu conferi algumas vezes se ele estava respirando, como fazemos loucamente com os recém-nascidos.
Sempre respondo às perguntas que citei no começo do texto, que ter filhos não é brincar de massinha de modelar. Não interessa se você tinha uma forma quadrada pra encaixar seu filho, se nasceu uma estrelinha do mar, é com ela que você precisa lidar. Simples e complexo assim. Calma, respira, eu não estou falando que você ficará passivo ou passiva sobre o que acontece. Estou apenas te lembrando que o filho que você idealizou não nasceu. Quando entendemos isso, algo lindo acontece: a gente busca aprender a lidar com quem eles são. Nervoso demais? Em vez de pensar em como posso torná-lo alguém calmo e tranquilo, vou pensar em estratégias para lidar com essa raiva de forma a não machucar a si ou ao outro. Ansiosa demais? Vamos pensar em formas de aprender a lidar com a espera e com a mente inquieta? Grita demais? Vamos estipular lugares onde o grito é permitido, lugares em que a animação e os outros sentimentos precisam ser expressos de forma menos barulhenta. Chora demais? Hora de enxergar em mim porque o choro incomoda tanto. Parar de querer mudar os filhos nos faz mudar as nossas perguntas. E com perguntas novas nos levam a novas respostas. Consegue perceber?
Se seu filho não mudar? Se não existir outra versão melhorada, mais próxima das suas idealizações? E se essa for a criança que você precisa educar, criar, amar e conviver? E já que estamos nos fazendo essas perguntas, e se você não mudar? E se todas essas características que você odeia fizerem realmente parte desse todo que é você? Quando finalmente vamos entender que a vida não é um self-service onde escolhemos o que vamos colocar no prato? Eu acredito no poder imenso de aceitarmos quem somos, de aprendemos a lidar com todos os nossos lados. E de fazermos isso na direção dos nossos filhos também. Quando abrimos mão da idealização, somos surpreendidos e surpreendidas com seres incríveis, tão incríveis que seríamos incapazes de idealizar. Nossos filhos têm muito a nos mostrar, precisamos apenas desembotar a visão, tão embaçada de expectativas, para finalmente ver. Não estamos brincando de “faça seu filhinho.”, quanto mais cedo entendermos isso, melhor a nossa vida será. E a deles também.
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from Crescer https://revistacrescer.globo.com/Colunistas/Elisama-Santos-Entre-lacos/noticia/2020/09/elisama-santos-e-se-o-seu-filho-ou-filha-nao-mudar.html