“Mamãe, quero dar uma volta na rua”, me disse com aquela vozinha de quem pede um doce. Martin, assim como tantas crianças desse mundo, lembra quase nada do mundo pré-pandêmico. Na vida que ele conhece não se sai de casa, a não para fazer algo essencial. Foi, então, que percebi algo triste: eu tinha me acostumado ao isolamento social de tal forma que não tinha me dado conta da importância da rua para o meu filho de 5 anos.
Desde que ele voltou à escola, com todos os protocolos de segurança, senti uma espécie de alívio por ele estar experimentando certa normalidade. O comportamento dele havia melhorado muito, sem comparação aos tortuosos meses de início da pandemia, quando não ousávamos sequer ir ao supermercado. O fato de morar numa casa com quintal - e de ele ter um melhor amigo vizinho com quem brinca - me fez pensar que esses estímulos já eram mais do que suficientes para esse período de vírus à solta. Até que esses olhinhos brilhantes de passarinho na gaiola me pediram pra sair, me arrancando do limbo de resiliência onde me acomodei para não pirar. “Claro, filho, vamos lá”.
Preparei uma mochila com quem prepara uma aventura: água, barrinha de frutas, casaco de chuva, máscara extra e, é claro, o onipresente álcool em gel. Ele estava animado e saltitante. Demos as mãos e saímos sem rumo certo pelas ruas do nosso bairro. “Uaaaau, olha aquela floresta!”, exclamou ao ver uma pracinha com algumas árvores. Saiu correndo e subiu num banco de pedra. Mais uma vez veio um longo “uaaaau, olha essa montanha”.
Confesso que senti uma misto de peninha e vergonha por não ter me encorajado ou, sei lá, sequer ter pensado sobre a importância da algo tão simples enquanto tentava sobreviver a todas as demandas emocionais que é ser uma mulher adulta no Brasil de 2021. Seguimos o passeio. A cada esquina dobrada, a felicidade de alguém que via algo completamente novo. “Olha essa casa, mamãe! Que maluca. Quem será que mora lá?”.
Nos divertimos com cada detalhe dos grafites pintados nos muros da nossa vizinhança, algo que sempre curti, mas, desde o início da pandemia, não tinha parado para observar. Me senti grata por meu filho estar me proporcionando um passeio tão simples e tão legal. Tudo para ele era incrível, cada irregularidade do terreno, cada coisa pendurada nos fios de luz, cada placa de proibido estacionar.
Cruzamos com vizinhos desconhecidos varrendo suas calçadas e Tintin, geminiano que é, contou coisas de sua vida, discorrendo sobre a nova pediatra ou sobre a escola que era perto dali, mostrando sempre sua máscara nova com a mesma intimidade com que se fala com um parente. As pessoas desconsertadas, não sei se pela espontaneidade inocente brotando por trás de um tecido ou talvez por terem sido pegas no flagra rodando no carrossel de suas próprias angústias, sorriram em resposta com um certo pesar melancólico.
Continuamos caminhando. A cada lixo jogado no chão, meu filho apertava os punhos fazendo força para baixo soltando um grunidinho selvagem (igual aos personagens de desenho animado) em sinal de protesto. “Olha aqui, mamãe, a pessoa jogou lixo na rua. Se continuar a jogar lixo o planeta não aguenta”. Concordei.
Logo adiante avistamos uma majestosa figueira, minha árvore favorita, se é que isso é possível. Martin se rendeu à vovó centenária, rainha do reino vegetal, soltando um “uaaaaaau” dessa vez ainda mais intenso. Correu até as imensas raízes e começou a falar com a árvore, dizendo “oi, mamãe natureza. Mamãe, você sabia que essa árvore é a mamãe natureza”? Sim, filho, eu respondi com o coração inundado de ternura. Como se não bastasse, ele continuou e proferiu a seguinte frase (JURO!): “Mamãe, essa árvore é sagrada. Se você olhar sob um outro ponto de vista você vai ver que essa árvore é sagrada”. Fiquei atônita. Puxei discretamente o celular para tentar que ele repetisse, afinal ninguém acreditaria se eu contasse. Mas, esperto que é, logo viu a câmera e voltou ao seu modo criança fazendo as palhaçadinhas que usa para disfarçar algo que acabou de fazer.
De onde veio essa frase? Ele pescou em alguma conversa? Alguma vez eu falei isso para ele? Não lembrava. De qualquer forma, agradeci aos céus pela excelente edição de realidade arquitetada por suas redes neurais em formação. Alguma coisa até aqui eu acertei, pensei orgulhosa. Depois de mais de uma hora atravessando esses portais mágicos todos que a rua nos dá, avistamos nossa casa. Martin ficou um pouco decepcionado. “Vamos andar mais, mamãe? Eu amo andar com você”. Claro filho, todo dia. Nem que seja só uma volta na quadra. Critiquei mentalmente esse “só" antes de virar a chave da porta de entrada.
Tainá Müller, atriz, jornalista, pós-graduanda em filosofia contemporânea e mãe do Martin, 5 anos. Pensando a maternidade como um potente catalisador de evolução. Quer falar com a colunista? Escreva para: crescer@edglobo.com.br
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