A pergunta é: o que você faria se descobrisse que o carro que você acabou de ganhar, o apartamento que vocês moram, o vinho que você aprendeu a tomar, o camarão graúdo que você come e todas as viagens que vocês fizeram em família nos últimos tempos fossem financiadas pelo desvio de dinheiro público e outras falcatruas promovidas pelo seu pai? Você acaba de ingressar na vida adulta, nunca tinha se dado conta e, agora, depois do comentário esquisito do barbudo da faculdade, começou a ligar os pontos e entendeu, finalmente, quem eram aqueles caras estranhos na sala da sua casa naquele dia de manhã.
Seu carro não é exatamente seu. Tampouco do seu pai. Você vai continuar usando? Você não fez nada? Foi um presente do seu pai corrupto? O quanto isso te corrompe? Desde que fui mãe, penso nos filhos. Gostaria que as notícias que vemos todos os dias nos jornais de desvios de dinheiro da educação, da saúde, as falcatruas com aposentadorias de idosos, merenda escolar tirada da boca de crianças famintas, seguissem sendo noticiadas em capítulos diários. Até sabermos do momento do jantar do fulano, se conseguiu fazer as brincadeiras bobas de sempre com o filho, mesmo depois de a matéria do Jornal Nacional expor seus podres, e ele ignorar os fatos, como se nada tivesse acontecido.
– Filho, tudo isso que estão falando por aí do papai é mentira, viu?
Como fica esse rapaz nisso tudo? É fácil colocar todos no mesmo saco. Filho de peixe, peixinho é – diz a sabedoria popular. Fácil seria. Mas a coisa não é tão simples assim. Há dor no meio. E os filhos do peixe grande podem não ter a mesma estrutura cascuda. Mas, por outro lado, também não querem entregar a chave do carro para o pai. Grande dilema.
– Eu não vi nada, eu não sabia! Não tenho culpa de ter nascido nessa família!
O que você faria? É bom refletir sobre isso. E perguntar aos pequenos. Como abandonar o berço de ouro?
Preciso dizer que me refiro aos possíveis filhos realmente incomodados, que não se deram conta daquilo a que pertenciam e que levaram o susto.
O que você faria? Há a possibilidade de fingir não ver. Mas fingir não ver, de agora em diante, é ser cúmplice, na medida em que vem do crime o seu sustento. Você cresceu, não é mais uma criança. Queria não saber, mas agora sabe. Como não compactuar com sua matriz, o cenário onde foi criado? É uma boa pergunta. O que você faria? E sua mãe? Será que ela sabe? Há quanto tempo?
É preciso falar. É preciso ter coragem de mudar padrões, linhagens inteiras de comportamento antiético por falta de coragem de ir contra o conforto. E, muitas vezes, um amigo, uma mãe corajosa, poderia, numa conversa, quebrar o elo da corrente hereditária e libertar o menino da sina da picaretagem. Fazê-lo acreditar que, apesar de não ver saída, de parecer estar em sua carne o gene da usurpação, dá para mudar. Apesar do carro novo, da mancha no nome, da condenação. Ele pode ser outro. Se tiver coragem, ele tem a possibilidade e a liberdade de ser outro. Pode devolver um pouco do que comeu e bebeu sendo outro. E se libertar da herança maldita.
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