Tuesday, March 24, 2020

A quarentena do coronavírus: um BBB às avessas

Quarentena é BBB às avessas: ninguém está nos vendo (Foto: Nicolette Attree/Pexels)

 

Todos levávamos nossas vidas no ritmo em que estávamos acostumados: “Nossa, a minha vida está uma correria”, “Desculpe que não lhe respondi aquela mensagem”, “Não consigo ter tempo para me cuidar”, “Meus filhos dizem que eu estou muito pouco tempo com eles”, “não sobra tempo para nada além do trabalho”. Esta vida do século 21, marcada, sobretudo, pela aceleração dos dias e pelo individualismo (o que importa é a minha vida, a minha carreira, o meu sucesso e a minha proteção) recebeu um duro golpe desde o mês passado, quando o Coronavírus chegou como um imperativo de mudança para o mundo inteiro. Não somos mais os mesmos, tampouco jamais voltaremos a ser - e isto pode ser vivido como um grande ganho existencial. Não há como retornarmos à vida “normal” depois disso. O mundo está ao contrário, e todo mundo está reparando, e só consegue falar disso.

A primeira fase desta grande transformação planetária de comportamento está se dando a partir das quarentenas, que as populações atingidas pelo vírus está sendo convocada a fazer. Fazendo-nos retornar à casa de onde sempre estávamos longe, somos trazidos para um novo formato de funcionamento familiar. A casa passa a ser o lugar de todas as funções da vida. Antes saíamos para trabalhar, estudar e divertir. Durante algum tempo, desde os últimos dias, somos desafiadas e desafiados a viver todos os papéis sociais em um mesmo lugar. O quarto, a sala e a cozinha passam a ser os lugares de se proteger do vírus, de evitar contaminar terceiros, de tratar qualquer doença, de brincar com as crianças, de cuidar da casa, de trabalhar à distância, de construir alternativas para a nova forma de vida. Tudo ao mesmo tempo agora, e no mesmo lugar. Famílias com crianças, antes aliviadas pelos turnos escolares que distraíam e ensinavam novos conteúdos aos pequenos, agora se transformam em um grupo que precisa encontrar como entreter os pequenos brincantes ao longo de todo o dia.

Estamos vivendo um Big Brother Brasil às avessas. Não há prêmio, não há jogo. As pessoas confinadas não terão que fazer alianças e seduzir o público para ficarem na casa. O projeto de se manter em casa é coletivo, com finalidade humanitária e ao mesmo tempo de autoproteção. Não haverá um vencedor deste BBB. Quando a quarentena terminar, estaremos todos no pódio, e o prêmio será incontável, muito maior do que qualquer valor monetário. Quando ela acontecer, terá sido o efeito da vitória contra a multiplicação absurda do vírus. E, o melhor: não estamos sozinhos, isolados do mundo. Temos o contato virtual, que tanto nos afastou na última década e passou a ser o vilão das relações presenciais, como uma das salvações para o afastamento físico. Se não podemos nos tocar, podemos nos ver através das telas. Podemos chorar juntos, falar de nossos medos, acessar os familiares e amigos distantes. Estamos reinventando todos os processos humanos. O Coronavírus chegou para entregar novas portas para uma vida que se mostrava asfixiada por tão pouco tempo para viver o que realmente importa.

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Voltar para casa neste novo formato pode ser um grande dilema para muita gente. Nós, adultos, somos ensinados a deixar de lado a ludicidade, a criatividade e a leveza em muitos espaços de trabalho. Somos convidados a sermos “pessoas sérias”, “responsáveis”, “maduros”. Estranhamos, mas às vezes não queremos admitir, o funcionamento infantil. Ou tantas vezes gostamos delas e nos nutrimos da fantasia que elas nos ofertam, mas em uma fração bastante limitada de tempo. E agora, com a porta da rua fechada até segunda ordem, não há “lá fora”. Tudo acontecerá aqui dentro, tudo será parte da nossa aventura de construir uma nova família que funcionará nas bases estranhas que o vírus nos obriga a viver. Em poucos dias de confinamento, tenho recebido através das redes sociais inúmeras mensagens de mães e pais, confusos entre seus medos e as necessidades profissionais, domésticas e de cuidado com os filhos. Quero deixar aqui algumas palavras que possam representar um abraço virtual, demorado, silencioso e cheio de amor. Estamos juntos neste tempo novo. E, desta forma coletiva, encontraremos as saídas para a convivência familiar.

Nós somos falíveis, e somos regidos por emoções que se desencontram em meio a notícias que nos amedrontam. Não conseguiremos ser perfeitos; é tempo de deixar cair a ilusão de que poderemos ser o que gostaríamos. Haverá choro, haverá grito. A impaciência poderá existir. O que fazer, diante destas cenas que tanto quereríamos longe de nós? Um exercício de autocompaixão. Naquele momento, foi o que nos coube como possibilidade. Hoje, compreendemos o grito não como a responsabilidade da criança. Pode ser que tenhamos escutado, quando os pais vinham se desculpar: “Mas você, também, me enlouquece!!!”. Quem se desculpa assim está colocando a responsabilidade no outro. É hora de começar a assumir as nossas emoções, buscar o abraço que falta, chorar junto. Dizer aos filhos que a impaciência aparece justamente porque há muito o que fazer, e que a experiência está difícil para todos, e que estamos aprendendo a viver de um jeito diferente durante estes dias. Não significa falar tudo para eles, é justamente o contrário. A humanidade em nós é parte da intimidade que conseguimos construir com eles. Eles também têm dúvidas, medos e raivas sobre estar em casa, sem os amigos. Nós podemos fazer uma roda de conversa para falar das raivas. Nós podemos fazer ligações para as pessoas de quem sentimos saudade. Nós podemos brincar com os amigos através das telas, inventando um jeito de se encontrar e vencer o afastamento com o tipo de conexão que o coração sabe muito bem compreender.

Somos aprendizes deste tempo novo. Estamos em tentativa e erro, exercitando as nossas habilidades de convivência e fazendo novos pactos. Conversando com os familiares sobre como pedir ajuda nas horas em que a intolerância ou o medo aparecerem como monstros que nos engulam. Aceitando a alegria que pode existir numa brincadeira, a risada divertida que pode invadir a cozinha enquanto se conversa sobre uma coisa séria, aproveitando os tempos compridos para reaprender a ser criança ou adolescente com nossos filhos. Eles têm muito a nos apoiar, sem que fiquem com os ombros arqueados por uma responsabilidade de cuidar dos adultos. Eles simplesmente cuidam de nossa alma quando nos invadem com suas invencionices, quando nos levam para o abraço com a fantasia ou na hora em que nos esquecemos de tudo durante um belo jogo de tabuleiro ou de adivinhação. Quem tem filhos está com muita sobrecarga na quarentena, e certamente vai se sentir no limite da paciência e do equilíbrio emocional. Peça à sua criança para brincar com você um pouco. Tudo está lá dentro, e pode ser que o mais urgente para cada um de nós, agora, seja fazer a alma cantar.

Neste BBB ao contrário, não há ninguém nos vendo. Estamos com a privacidade garantida, para que nos sintamos minimamente confortáveis para fazer da quarentena um tempo de plantar esperança e colher delicadeza. Ainda que, antes do broto surgir, haja tempestades fazendo furos na terra macia de nossas emoções.

 


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from Crescer https://revistacrescer.globo.com/Colunistas/Alexandre-Coimbra-Amaral-A-humanidade-em-nos/noticia/2020/03/quarentena-do-coronavirus-um-bbb-avessas.html

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