Tuesday, October 22, 2019

Por uma nova vida: livro infantil conta histórias de crianças refugiadas ou imigrantes no Brasil

O motivo da vinda de Cristina e sua família virem ao Brasil foi por conta de uma perseguição do governo de seu país, a República Democrática do Congo: o pai dela trabalhava para um opositor do governo e a situação ficou muito difícil. Ele veio primeiro e Cristina e as irmãs chegaram dois anos depois ao Brasil (Foto: Divulgação)

 

Eu Estou Aqui. O título do livro não poderia ser mais impactante: como um grito, ele nos laça a olhar os rostos de 12 crianças estampadas na capa. No subtítulo, mais um convite à leitura: “crianças que deixaram seus países para começar uma nova vida no Brasil”. Pronto. Você já sente que é preciso folhear, pois estas crianças já são “nossas” e agora é saber de onde elas vêm, o que estão sentindo e o que esperam da aposta de viver em nosso país, um lugar com tantos desafios próprios mas que, ainda bem, exibe iniciativas belíssimas de acolhimento.

Conversar com a escritora e roteirista Maísa Zakzuk é perceber esta vontade de escuta. A partir de uma ideia dos editores da Panda Books, a autora partiu em busca das histórias, tateando maneiras de fazer isso da forma menos invasiva possível. Talvez o leitor desejado fosse um bom limite: a proposta era narrar histórias de crianças e jovens para crianças e jovens. Ganhamos todos: folhear o livro é como ter nas mãos um compêndio de esperança. Os retratos da fotógrafa Daiane da Mata impactam: sorrisos, características físicas diversas, olhares penetrantes, contextos de vida levemente sugeridos em um projeto gráfico leve e agradável de ler. Cada história é narrada em linguagem atrativa para leitores de qualquer idade, de formas bem diferentes e sempre com uma curiosidade relacionada à narrativa. No final, fotos dos bastidores revelam o que mais importante pode ter ficado desta jornada: a oportunidade que Maísa e as crianças tiveram de conversar.

A seguir, confira trechos da entrevista com a autora:

CRESCER: Maísa, como nasceu a ideia de fazer um livro como este?
MAÍSA ZAKZUK:
No ano passado, a Tatiana Fulas e o Marcelo Duarte, da Panda Books me convidaram para falar de um projeto sobre crianças refugiadas, para contar histórias delas uma por uma, porque eles acreditam ser uma temática tão dura e tão urgente de a gente tratar. E há pouco material de apoio até para escolas, por exemplo. Como eu trabalhava já em meu outro livro – o Árvore da Família – com genealogia, raízes, eles acharam que era a minha cara. Quantas nacionalidades? Ah, o maior número possível! E eu pensei “ah, vai ser fácil, porque no Brasil tem 80 regiões de refugiados do mundo...” Para a minha surpresa, demorou! Fiz contato com todas as instituições ligadas às questões de refugiados e imigrantes também! Desde o Acnur – o braço da ONU – até pequenas entidades. E contei muito com escola! Onze das 12 crianças são de escola pública, municipal e estadual. Um falando para o outro e foi. Fontes diversas. Fiz tudo para me aproximar às comunidades.

Rosa nasceu em Angola e sua família saiu em 2013 da capital, Luanda, terra de quase 30 anos de guerra civil. A primeira noite no Brasil foi no Rio de Janeiro, mas hoje mora na cidade de São Paulo, onde vai à escola e a aulas de balé. As lembranças de brincadeiras na terra natal ainda são muito fortes (Foto: Divulgação)

 

CRESCER: O formato já estava definido?
MZ:
Então, a gente queria desde o início as histórias, um box informativo que é algo relacionado ou ao país, a um costume, região. No final, um informativo com as leis e outras indicações e os bastidores. Como eu sou da área de vídeo, eu também queria ter feito assim. Mas a primeira preocupação foi garantir o olho no olho, que elas ficassem à vontade... No fim, ficou super mesclado das regiões e de status, pois temos crianças apátridas, refugiadas e imigrantes. Todos são imigrantes, mas nem todos são refugiados.

 

CRESCER: E as histórias por si já são muito diversas...
MZ:
A gente tem muitas representações e qual era o grande desafio? Das histórias já com o ponto de interseção entre elas – todas vêm um pouco traumatizadas, às vezes até deprimidas, todas com saudades, medo, ver ali qual era o diferencial entre elas. Isso que foi muito legal. A gente entrava na casa delas ou na escola, ia conversando primeiro, e depois eu dizia “vamos começar a anotar agora?”, mas eu ja tinha tudo. E isso fluía bem gostoso. E sempre a família perto, ficam cuidando e também a questão da língua, nem todos falam bem o português. Uma produção difícil...

Ao lado de Maísa Zakzuk, autora do livro, a menina Mariam, filha de palestinos nascida em Damasco, mas que teve a nacionalidade síria negada pelo país. A família dela vivia num campo de refugiados frequentemente alvo de ataques e bombardeios. Além da prát (Foto: Divulgação)

 

CRESCER: Até na comunicação...
MZ:
Uns amigos iam me orientando, até minha entonação de pergunta eu tinha que cuidar. Mas parece que foi tudo difícil mas não! Foi um dos melhores trabalhos que eu já fiz na minha vida! Porque eu juntei histórias que eu amo ouvir, crianças que é a minha área, tantos anos na TV Cultura...

CRESCER: Juntou tudo!
MZ:
Sim! E aí eu ia pra casa, começava a escrever. A primeira versão ficou um pouco mais jornalística, não era mesmo para fazer na primeira pessoa.

CRESCER: E você foi mexendo...
MZ:
Isso. Aí fiz contato com uma especialista nestas questões, a Rosana (Bahringer), da Unicamp, leu a obra, elogiou (foi um segundo presente!) e ela avaliou que eu repito aqui. Nas entrelinhas de cada história de vida, dá para abordar muitos aspectos e eu quis mesmo deixar os temas subliminar. Então eu trato de xenofobia, da saudade, do trauma, do sonho, do otimismo, do pessimismo, cada história de vida tem algo e que é além desta parte informativa, sabe?

Rimas está no segundo ano de uma escola pública brasileira e vem aprendendo o português com a ajuda de outros amigos que falam árabe, como ela. Quando ela diz que é da Líbia, a maioria das pessoas entende Líbano e ela corrige com veemência. Ela sente falta dos avós e dos tios e sonha com uma visita deles por aqui (Foto: Divulgação)

 

CRESCER: Não explicitar isso ficou a melhor parte...
MZ:
Tem uns trechos mesmo. Ela conseguiu perceber os toques, que não é “para disfarçar”, para não ser didático, mas está nas históras.

CRESCER: Fica com uma delicadeza...
MZ:
E a gente se divertiu nas entrevistas, sabe? Acho que as fotos passam isso... A Daiane da Mata que é super sensível e de modo geral está ali... as crianças têm sempre esse lado.

Ghazal também nasceu em Damasco, onde viveu até os 4 anos. O pai dela foi preso algumas vezes por ser considerado rebelde na guerra da Síria. Antes de se mudarem para o Brasil em 2014, viveram por um ano no Egito. Hoje aqui ela é tradutora para os novos refugiados de língua árabe que chegam à escola (Foto: Divulgação)

 

CRESCER: Um retrato, né?
MZ:
Sim algo que vi disso também é que os professores estão fazendo milagres. Agora que tem uma cartilha para a escola, de como recebê-los, mas não há uma formação, estão indo empiricamente.

 

CRESCER: E você também foi se surpreendendo e aprendendo...
MZ:
Quanto mais dou entrevista, isso continua. A gente acaba parando de falar “os refugiados” ou “os imigrantes”, como uma massa que se descola e você não sabe direito quem é quem... hoje eu olho uma criança e vejo que é cada um tem uma história.

A crise econômica de La Paz, capital da Bolívia, fez os pais de Rodrigo decidirem tentar a vida aqui no Brasil, em uma viagem de carro, de quatro dias, até aqui em 2016. Adaptado aos costumes brasileiros, só não gosta mesmo de feijoada e brigadeiro e sente saudades das "papas fritas", que são as batatas fritas bolivianas. (Foto: Divulgação)

 

CRESCER: Sem generalizar...
MZ:
Como a gente fala “ah, os brasileiros isso...” Isso serve para gente saber que por mais que tenham histórias parecidas... quem hoje não tem alguém deslocado, imigrante na família? Se não for de fora do país, mas daqui mesmo. Agora, quando se trata de criança, tem a questão que ela foi a única que não escolheu. Muitas vezes nem entendeu ainda o deslocamento. Aqui enfrentam uma barra e onde elas vão crescer? Na escola.

CRESCER: E o que vai ter mais?
MZ:
Meu sonho agora é daqui a alguns anos quem sabe fazer outro livro de como elas estão.

A capa do livro, Eu estou aqui (Foto: Divulgação)

 

EU ESTOU AQUI – Crianças Que Deixaram Seus Países Para Começar Uma Nova Vida (Panda Books, R$ 41,90)
Textos e reportagem de Maísa Zakzuk
Fotos de Daiane da Mata
A partir de 6 anos.



from Crescer https://revistacrescer.globo.com/Diversao/Livros/noticia/2019/10/por-uma-nova-vida-livro-infantil-conta-historias-de-criancas-refugiadas-ou-imigrantes-no-brasil.html