Meu irmão estava no ônibus, quando entrou um antigo amigo do futebol. Sentou ao lado dele e começaram a conversar. Tinham jogado juntos várias peladas de rua, coisa típica dos subúrbios do Rio de Janeiro. A própria turma fechava a rua de pouco movimento e dois chinelos virados no fim de cada campo definiam os gols. Os times se faziam com quem fosse chegando. Pronto.
Diversão certa, muitas vezes com direito a torcida.Quando vinha um carro, uma paradinha, uma ajeitada nos chinelos e a partida seguia. Meu irmão sempre amou futebol. Vivia ali. Era conhecido como Medusa, por conta do enorme cabelo encaracolado. Naquela tarde de sábado, encontrou no ônibus o amigo de boas partidas.Não jogava havia muito tempo, o trabalho o tinha pego de jeito. Conversaram um pouco, lembrando os bons tempos. A certa altura, o amigo apontou para duas meninas que estavam no banco da frente e falou:
- Essas meninas aí estão com você?
- Não
- Então, valeu, Medusa, preciso ir que eu vou fazer um ganho.
Sacou uma arma da cintura e começou o seu serviço. No fim do assalto, já lá na frente, ao lado do motorista, lembrou de se despedir. - Valeu, Medusa! Prazer te ver. E desceu. Meu irmão paralisou quando o ônibus inteiro virou para ver quem era o tal do Medusa. Não sabia o que dizer. Foi falando a mistura de frases que passava pela sua cabeça, tentando processar tudo aquilo. - Eu não tenho nada com isso. Jogou bola comigo. É gente boa. Estava conversando com ele. Gosto de futebol. Ele também. Ele é gente boa. Levei um susto. Não via faz tempo. Vai saber por que fez isso. Vai saber por que fez isso. O que molda o destino de dois meninos que cresceram juntos na mesma rua, em condições parecidas? Criação? Acolhimento? Esperança? Perspectivas? Oportunidades, talvez.
Meu irmão é branco. Não foi linchado. Não chamaram a polícia por ele ser amigo do bandido. Desceu no seu ponto e ainda com tudo isso para contar. Essa história é um tesouro para mim. Ela me fala do bairro em que nos criamos, da mobilidade da vida, de como o afeto independe da razão. Essa história me faz tentar imaginar o destino de todos os meus amigos de escola, porque estudei a vida inteira em escola pública, onde pude conviver de igual pra igual com meninos e meninas muito diferentes de mim e muito mais pobres do que eu.
Eu e meu irmão não éramos ricos, nossa família tinha um Fusca e almoços mais fartos nos domingos, mas tivemos a imensa riqueza de passar a infância e a mocidade com um leque amplo de pessoas que a nossa escola e o nosso bairro nos proporcionaram.Tenho certeza de que isso ampliou a nossa generosidade. Nem todo mundo tem essa sorte. Cada vez vivemos mais em nichos. Mas podemos pegar nossos pequenos pelas mãos e andar atentos. Usar o ônibus e o metrô. Ir à feira, ao mercado, andar nas calçadas, brincar na praça. Abrir os olhos para a amplitude do mundo e o coração para o fascínio pelas diferenças.
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