Francisca reagiu feio. Falou duro e alto, berro com conteúdo grosseiro mesmo. E sustentou a malcriação olhando nos meus olhos petulantemente, do alto dos seus 1,24 metro.
Me aproximei possessa, agachei para encarar num tête-à-tête de jeito, segurei seu braço e... afinei.
Emudeci três longos segundos, digerindo a forma que tomou a manifestação de raiva dela.
Aquele tom, aquele jeito, aquela boca bicuda à frente, era eu brava inteira.
Tirando a ocorrência em si e tudo o que foi necessário reprisar na advertência (fato, educar é refazer a mesma ação como TOC, é coisa como entoar mantra), me caiu bem mal minha filha me escancarando.
Aquela configuração era, francamente, toda minha.
E, antes de me retirar perplexa, reuni minha frustração esparramada, fiz ajustes na fonte e tomei o caminho para uma repreensão que, cá entre nós, seria de efeito bem-sucedido em mim.
Minha menina me envergonhou. Não dela, mas de seu repertório ali. Que é meu. E é de seu pai. E mais. É de como vivemos nossa relação como casal.
Ela e Zeca são produtos nossos.
Quando paro para pensar nisso, caio num lugar comum peso-pesado; o da responsabilidade que tenho nesse planeta, por ter colocado nele dois seres que são agentes na vida de outros seres e no mundo. Agentes com bagagem minha.
Ao mesmo tempo, meus seres tão zelados, nesse mundo com livres autores de histórias cruéis.
Mas, saltando o lugar comum, enquanto escrevo, percebo que talvez tenha usado Francisca para falar mesmo de mim.
Me encarar como ser responsável, adulto, mãe, profissional, culpada, me faz, há tempos, olhar para os meus pais. Eles que foram e são pais lindos, mas que nunca me disseram que um dia eu teria que os desculpar.
E, mesmo que na minha história de filha tenha existido sempre um amor dominante para me nortear, porto-seguro para voltar e muito a ser grata, entendi que haveria o quê desculpá-los depois que me entendi produto. Deles. Que, por sua vez, são produtos dos meus avós.
Eu, filha crescida que sou, surjo como a mãe possível dentro do meu arranjo.
Mas meu trabalho bonito mesmo, é desejar ir além. Sei que meus pais foram bons nisso.
Acontece que pai e mãe têm sempre culpa.
Sem eles, não tem drama no roteiro.
Quero dizer, sem eles tem drama de roteiro kafkiano, surreal.
Coisa como prólogo e epílogo da psicanálise.
Isto posto, circulo dizendo que, por ora, não me sinto apta a me responsabilizar por mais nenhum ser vivo. Nem cachorro, nem gato, nem peixe.
Nenhum pet. Incluo planta no contexto.
Ensinar, ver necessitar, ver sofrer, ver murchar, é revezamento de doação, dor e culpa. O que dirá, coabitando um mesmo espaço que o meu.
Só eu sei como tendem a me cutucar as vivências. E o quanto me torturam minhas faltas.
Está entendido que, mesmo dotados finalmente do amor incondicional que é condição sentir, é ato falho fugir de escolhas tortas, de inconsciente tomado de limitações e curvas que atravessam nossa vontade.
Está entendido que na missão de criar seres, no propósito de fazer o melhor, talvez não se possa correr de transbordar e afogar o outro, autorizados pelo amor.
Talvez não dê para abrir mão de desejar que um filho ocupe no mundo o que a gente não preencheu.
De julgar mais seguro que eles sigam por rotas que percorremos.
Talvez não dê para se livrar do dia em que, sendo mãe e pai, se necessite ser filha e filho de filhos nossos.
Não se consiga evitar de abrir distâncias.
Nem sequer escapar de deixar buracos. E vácuos.
Porque, olhar por si, se salvar e se perder, é coisa de gente.
Gente mãe e pai inclusive.
Talvez não se seja capaz de fugir do; "um dia vocês me entenderão".
Francisca reagiu duro. Tinha eu nela e tinha, junto, minha mãe.
Justo dizer que, alguns dez minutos depois, se achegando em sua melhor forma de encher coração, minha mãe e eu surgíamos ali também.
E na miscelânea do que carrego em mim, produto dos meus pais e do que venho arrematando do mundo, me agarro à minha peneira, cuidando de fluir mel em meio ao fel.
Atenta ao joio no trigo.
Intentando purificar, salvar o melhor para os meus filhos.
Meus seres, meus produtos, meus amores, eu sempre irei além por vocês. Mesmo sabendo que o além às vezes não será o bastante, e que a culpa será toda minha.
Desde já; me perdoem.
“Um dia vocês me entenderão."
MARIANA DU BOIS é atriz, mãe de Francisca, 7 anos, e Zeca, 4, e escreve sobre maternidade. "Agora eu era a mãe, era a rainha e era também a bruxa. E pela minha lei, filho meu será sempre feliz"
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