Filha,
No dia 31 de dezembro, eu te contei que, no dia seguinte, você nunca mais colocaria o ano de 2018 na data da sua lição de casa. Te disse que, depois da meia-noite, chegaria um ano-novo de novo, com janeiro, fevereiro e os outros meses todos. Então, cheia daquela sua certeza, você me contou que gosta de anos-novos. Que gosta de dias novos, com novas coisas.
E me colocou em mais uma tentativa de refazer um caminho que tantas vezes me empenhei em remendar, só para chegar até o momento onde eu, assim como você, conseguia enxergar os dias novos. E também tinha certeza que gostava deles.
Porque eu me lembro de assisti-los vindo. Da presença dos minutos novos, das horas demoradas. Lembro quando aprendi a descobri-las nos ponteiros do relógio que ficava no corredor entre os quartos da casa da vovó, que era a minha também, eu me sentava na frente dele, tentando entender a contagem assistindo os segundos saltarem ponto a ponto.
Quase que um testemunho do tempo. Uma contemplação, que é uma forma da gente parar só para se encantar.
E lembrei que são muitas as vezes que eu também tentei ir até o ponto em que eu deixei de notá-los, até o momento que eu comecei a me extraviar. Uma coisa tipo se perder.
Arrisco dizer que foi quando eu comecei a me ocupar de coisas que não cabiam em mim no momento em que eu estava, que eu existia. Sim, porque a gente acha que sabe, mas a verdade é que não sabemos nunca se teremos sequer mais uma hora pra existir.
Então foi quando eu me pré-ocupei pela primeira vez. Isso, preocupar... Um jeito de colocar em nós, coisas que ainda não deveriam chegar. Como se nos perdêssemos num caminho em que ainda nem colocamos o pé. Um lance esquisito que quando a gente vê, já é uma condição, um modo de existir.
Não é difícil entender que isso é algo que quase nunca funciona, uma vez que a gente só consegue realizar coisas no momento que a gente está, no instante que a gente é. Visto que ninguém sabe se vai ser daqui a pouco. Mas essa é uma das coisas chatas de se tornar adulto, meu amor.
E sem que eu me desse conta, o tempo que dita minha marcha, me coloca agora para assistir você e Zeca saltando ponto a ponto os seus segundos, me põe de cara com seu curso, acerta meu ritmo pra que eu testemunhe a sabedoria que ainda é de vocês de se pregarem no lugar onde "são". Aquela sua regra que proíbe celular no seu quarto enquanto brincamos juntas, ajuda bastante no processo, filha.
Você está agora aqui do meu lado, pi-ran-do num passatempo com seus dedos e cantarolando uma música que intercala uma narrativa. E, mesmo assim, o tempo pra você insiste em não passar.
+ Sobre bronca, abraço e a promessa de cuidar
Já perguntou 12 vezes se demoraremos para chegar em nosso destino nos primeiros 10 minutos do vôo onde estamos. Pedi para você dormir como seu irmão, justificando que o tempo andará mais rápido, numa tentativa de sabotar suas horas, porque é meio que isso filha, o tempo também passa pela gente quando dormimos ou quando sonhamos acordados... E sonhar acordado às vezes é pesadelo também, é contar repetidamente para nós mesmas histórias que não gostamos, de propósito, colocando um monte daqueles personagens ruins em nossos pensamentos que — em vez de acharem algo como essa narração muito louca que você está fazendo aqui do meu lado, na construção de uma existência mais criativa e inspirada — fica pairando pra frente e pra trás, no engano de viver coisas que não voltam e outras tantas que nem aconteceram.
Meus filhos, de tudo que a gente tem, tempo e saúde são das coisas mais preciosas, e é verdade afirmar que eles andam juntos, e que, quando se tem bastante de um, o outro também é abundante e, cá entre nós, essa é riqueza das mais ricas.
+ Sobre ser mãe, rainha e bruxa
Escrevo pedindo para que não percam aquela prontidão que vocês têm para censurar que se repitam as histórias ruins, para vetar os monstros e personagens que vocês não gostam.
Que seja de vocês a certeza do novo, e do recomeço de hoje e de amanhã, e de depois e depois e depois.
A firmeza na garantia das brechas que a vida dá em todos os minutos, mesmo nas horas dos dias do ano que vai ficando velho.
Tô aqui de perto contemplando, colando de vocês, na fé de aprender de novo.
Com amor,
Mamãe
MARIANA DU BOIS é atriz, mãe de Francisca, 6 anos, e Zeca, 2, e escreve sobre maternidade. "Agora eu era a mãe, era a rainha e era também a bruxa. E pela minha lei, filho meu será sempre feliz"
from Crescer https://revistacrescer.globo.com/Colunistas/Mariana-du-Bois-Agora-eu-era-a-mae/noticia/2019/02/que-voces-nao-deixem-de-proibir-seus-monstros-e-enxerguem-sempre-brechas-que-vida-da.html