Fui assistir a uma peça de teatro que tinha tradução em libras.
A certa altura, meu olhar se desviou para um menininho que estava algumas fileiras à minha frente e vi que ele não olhava para o palco e, sim, para a intérprete. Acompanhei seu olhar. A expressão da moça, a rapidez dos gestos e a eloquência de tal linguagem me fizeram ficar absorta tal qual o pequeno.
A peça era boa, juro, mas eu simplesmente não conseguia voltar. O que nos prendia a atenção? Talvez aquilo que não costumávamos ver nas esquinas: o inusitado, a novidade da linguagem.
Pensei em todo o blá-blá-blá que dediquei durante anos a fio a meus pequenos. Quantos “para”, quantos “nãos”, quantos “vai tomar banho”, quantos “vem aqui”. Tudo sem tradução eloquente.
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Voltei para a peça. Afinal, eu não entendo mesmo de libras, minha velocidade de assimilação e tédio já é grande e, infelizmente, minha capacidade de maravilhar-me costuma se esgotar rapidamente nesta minha fase mais que adulta. O menininho permaneceu na intérprete.
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Tentei me concentrar nos atores, mas meu olhar agora tinha outra curiosidade: o olhar do menino. Cheguei a pensar que o pequeno pudesse ter mesmo deficiência auditiva, mas logo vi que não, pois em nenhum momento ele olhava para o palco para conferir o que a sua intérprete dizia. O que, naquela mulher, era capaz de dizer-lhe tanto? No que ela superava um interlocutor normal?
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Voltei com força aos atores, mas meu pensamento escapou, colocando-os de novo em tecla “mute”. Eu lembrava dos olhares surdos dos meus pequenos. Lembrava das boquinhas abertas, da sensação de não ser ouvida, de não conseguir penetrar, de falar uma, duas, dez vezes e me sentir a mulher mais chata do planeta por isso. Se começasse tudo outra vez e pudesse mudar uma única coisa, acho que arriscaria essa, a quase impossível: tentar me controlar para falar só uma vez. Valorizar o que precisa ser dito com apenas uma fala. Arriscar não ter os banhos tomados ou os dentes escovados algumas vezes para valorizar o que não foi ouvido com a devida cobrança da audição.
Olho de novo o menino. Ele tinha voltado a sua atenção para a peça, mas eu, sem remédio, já tinha virado a pessoa mais surda da plateia, lembrando do quanto acabei falando para as paredes por excesso de palavras. As mães deveriam ter intérpretes. Pequenas fadinhas que pudessem ser acionadas em dias de estresse para, com silêncio eloquente, encantamento e gestos rápidos, livrar nossos filhos do nosso inútil caminhão basculante de palavras.
A peça era boa, juro.
Denise Fraga é atriz, casada com o diretor Luiz Villaça e mãe de Nino, 21 anos, e Pedro, 19.
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