Thursday, March 14, 2019

Lázaro Ramos: Uma história de Vitória

A liberdade (Foto: Pexels/ Joey Kyber)

 

O nome da minha bisavó era Vitória e ela nasceu em 1888. Eu já tinha essas duas informações há algum tempo, mas até então não havia feito uma associação que hoje me parece óbvia. Alguém que nasceu naquele ano, negra, e com esse nome, tem um sentido maior. No momento em que descobri isso, meus filhos estavam próximos e eu lacrimejei. ‘Tá chorando, pai? Por quê?’. Falei: ‘Filhos, é porque a tataravó de vocês nasceu em 1888’. Eles não entenderam nada.

Eu não queria a explicação rápida que sempre dão sobre os negros. Que vieram da África escravizados, e em 1888 houve a abolição da escravatura. Comecei um papo mais longo. Disse que há mais de 500 anos alguns africanos foram trazidos para o Brasil porque tinham conhecimento de agricultura e que os Malês, por exemplo, falavam vários idiomas, sabiam de construção e, por esses talentos e forças, foram escravizados, o que é uma coisa triste e que nunca mais deve ser repetida.

“A liberdade é uma vitória e, por isso, temos o compromisso de lutar sempre pela liberdade de todos”
 

Olhei para ver se estavam entendendo e falei a frase que para alguns ainda é novidade: ‘Não se deve chamar ninguém de escravos, mas sim dizer que eram pessoas que foram escravizadas’. Falar que uma pessoa foi escravizada é não colocá-la na condição de escrava, mas sim informar que algo interrompeu o fluxo natural da vida de um ser humano.
E eles retornaram a questionar: ‘O que é que tem a ver com 1888?’  Completei: ‘Depois de muita luta tentando a libertação, fugas, surgimento de locais chamados quilombos, onde os africanos escravizados se escondiam, em 1888, foi assinado um papel que colocava na lei oficial que já não era permitido ter escravos no nosso país. Mas isso não foi um milagre, isso aconteceu depois da luta de várias pessoas, algumas chamadas de abolicionistas e outras que não faziam parte de nenhum movimento, mas que queriam uma vida diferente, longe de maus-tratos, com acesso a direitos, inclusive o de ir e vir. O papel foi assinado e nenhuma compensação veio. Aquelas pessoas que até um dia antes trabalhavam forçadamente foram soltas nas ruas sem saber para onde ir, como comer, onde trabalhar e, principalmente, sem saber onde morar. Mas, ainda assim, crianças, o ano de 1888 me emociona por ter essa ligação com a sua tataravó que se chamava Vitória. Quisera eu perguntar para a mãe da sua tataravó, que era minha bisavó, por que é que ela chamou a filha dela de Vitória. Eu não sei como ela me responderia, mas, para mim, está muito claro. 1888.

Alguém que nasceu neste ano, a Vitória, neste caso, era um recado para todos nós. Para as filhas da vovó Vitória, para os netos da vovó Vitória, para mim e para vocês. Ela dizia que a liberdade é uma vitória e, por isso, temos o compromisso de lutar sempre pela liberdade de todos. Agora... ter a cabeça livre, já é outra coisa’.

Eles disseram que não entenderam essa parte. E eu disse, sorrindo: ‘Tudo bem. Esse assunto não vai terminar agora, vamos falar muito sobre liberdade. Por ora, guardem no coração: A tataravó de vocês se chamava VITÓRIA!’.

Lázaro Ramos (Foto: Bob Wolfenson)

 



from Crescer https://revistacrescer.globo.com/Colunistas/Lazaro-Ramos-Em-construcao/noticia/2019/03/lazaro-ramos-uma-historia-de-vitoria.html