O pensamento mágico nunca foi tão fundamental quanto agora. A arte, a imaginação, os contos de fadas e a cultura em geral sempre foram importantes, mas isso ficou ainda mais evidente na pandemia. Quantas vezes, nos últimos tempos, as brincadeiras, as séries, músicas, livros, filmes e histórias literalmente acudiram os nossos filhos e a nós também? Tem sido quase uma questão de sobrevivência...
Afinal, os estímulos culturais incentivam a capacidade de imaginar, essencial para enfrentar problemas e buscar soluções para as questões do dia a dia – tão necessário na dura realidade que estamos enfrentando. “A arte e o entretenimento sempre salvaram a humanidade, deram sentido à vida, permitiram-nos exercer algumas de nossas mais exclusivas funções cerebrais. Tudo por meio da escrita, pintura, escultura, teatro... Embora tenha proporção mundial, a covid-19 é menor do que a arte, a imaginação e os contos de fada”, defende o psiquiatra Luiz Scocca, do Hospital das Clínicas da USP, membro da Associação Americana de Psiquiatria.
A capacidade de imaginar é tão importante que faz parte, inclusive, da lista da ONU das dez habilidades do profissional do futuro – a flexibilidade cognitiva. Trata-se da virtude de ampliar os modos de pensar usando a imaginação para trazer diferentes caminhos e solucionar problemas cotidianos. Mais um ponto a favor: segundo um estudo das universidades de Konstanz, na Alemanha, e de Thurgau, na Suíça, quanto mais uma criança está aberta ao brincar melhores serão suas habilidades socioemocionais. Ou seja, a brincadeira que envolve imaginação permite que seu filho, tanto agora, como no futuro, saiba lidar bem com as emoções, se relacionar com os outros de maneira saudável e até mesmo estabelecer metas de vida. Não faltam motivos para estimular tal potencial no seu filho, certo?
Fantasia e criatividade
Incentivar o desenvolvimento dessas habilidades, no entanto, vai além do que o pequeno precisará para ser um bom profissional. “A imaginação é poderosa. Tem a capacidade de nos transportar, de impulsionar nossas habilidades criativas, estimular nosso cérebro e nos trazer felicidade”, disse à CRESCER a palestrante britânica Lorraine Thomas, CEO da The Parent Coaching Academy e consultora da Disney em filmes como Divertidamente.
Daí a importância dos super-heróis, contos de fadas e da imaginação – todos ingredientes que trabalham a fantasia – na vida das crianças agora e para o futuro. “Histórias, músicas e brincadeiras são o idioma dos pequenos. Talvez a gente tenha se dado mais conta disso na pandemia, reclusos com eles em casa”, opina a psicopedagoga Isa Minatel, autora do livro Crianças Sem Limites: educação empreendedora na primeira infância (Editora Figurati). A publicitária Renata Alves, 34 anos, mãe de Manuela, 6, sentiu isso nesses meses de isolamento. “Sempre brinquei com a Manu, mas era mais fora de casa, com outras pessoas. Nesse tempo confinada, sem mais crianças e precisando exercitar a criatividade, ela passou a fantasiar bem mais, inventar histórias. E eu embarquei junto”, diz.
O mundo imaginário exerce papel fundamental no desenvolvimento emocional. As histórias, por exemplo, seja em livros, filmes e peças de teatro, seja inventadas, trazem enredos que despertam a curiosidade, a criatividade e abordam sentimentos. Isso dá a possibilidade às crianças de projetar os próprios dramas, medos e emoções nos personagens. “O pensamento mágico é uma forma saudável de sair um pouco da realidade e buscar no controle dos seus próprios pensamentos a criação de repertórios que ajudem a lidar com as questões e os conflitos da vida real. Está dentro do nosso funcionamento psíquico e nos auxilia a aliviar a ansiedade, por exemplo. O mundo imaginário não é uma alienação, mas o acesso a um mundo que nos traz recursos para lidar com a realidade concreta”, explica a neuropsicóloga Deborah Moss, mestre em Psicologia do Desenvolvimento pela USP.
Realidade X Fantasia
A linha que difere esses dois conceitos na cabeça da criança é muito tênue. Como explica a psicóloga Rita Calegari (SP), até os 3 anos, ela não distingue realidade e fantasia. Seu universo psíquico ainda é uma coisa só, os mundos só vão se descolar mais para a frente.
“Por volta dos 5 anos, o pequeno consegue ter um entendimento melhor, mas vai depender da educação, do estímulo e da condição psíquica. Nesse período, fantasia e realidade ainda interagem. Só aos 7, ele tem mais clareza”, afirma.
Então como diferenciar a mentira da imaginação, e ensinar o seu filho a distingui-las? A mentira é uma inverdade, algo que a criança sabe que não é real. Quando ela diz “eu não bati no meu irmão” mesmo sabendo que bateu. A fantasia é a imaginação de algo que ela gostaria que acontecesse, como a Fada do Dente deixar uma moeda. “Uma mentira altera um fato. A imaginação amplia e contrói ideias”, diz Luiz Scocca.
Faz de conta na medida
“Ninguém pode viver em um mundo só de fantasia. Mas é importante saber acessá-lo”, diz o pediatra e neonatologista Nelson Ejzenbaum, membro da Academia Americana de Pediatria.
A frase já explica bastante. O estímulo à fantasia faz bem, e a criança tem de ser livre para criar. “Mas, se você percebe que ela está fugindo muito da realidade, não durante a brincadeira, mas na vida, é sinal de que pode estar exagerando no incentivo”, diz Isa Minatel.
Se a criança se fecha num universo de contos de fadas como fuga da realidade, acende um alerta para o que está ocorrendo com a vida dela. Nesse caso, vale avaliar o entorno: às vezes, o ambiente em que vive está tão pesado que ela escapa para a fantasia.
Um exemplo disso é o amigo imaginário. Não há nenhum problema o seu filho contar com essa “companhia” – ela é até benéfica, como explica a especialista Deborah Moss: “Por meio do amigo imaginário, a criança fala sobre ela. É uma maneira saudável de comunicação sobre seus próprios sentimentos”. Porém, se ela nunca se interessa pelos amigos, primos ou colegas reais, é preciso entender o que está por trás desse comportamento. “Minha filha mais velha teve um amigo imaginário, o Dudu, dos 2 aos 4 anos. Conversava, dava comida para ele... Foi uma fase que fez bem a ela. Mas jamais deixou de se divertir com outras crianças”, lembra o engenheiro civil Gustavo Antunes, 41, pai de Gabriela, 8, e Manuela, 6.
O papel dos super-heróis
O que dizer desses seres tão especiais? Eles são um mundo à parte no universo da imaginação – tanto que têm admiradores até na vida adulta, estampando camisetas e movimentando milhares de pessoas em eventos como a CCXP Worlds, maior festival de cultura pop do mundo que reúne atividades ligadas a personagens de filmes e quadrinhos, entre outras atrações.
Os super-heróis sempre existiram na imaginação da humanidade, desde os mais antigos, como os personagens mitológicos, aos modernos Super-Homem, Mulher Maravilha e Batman. “As crianças criam heróis o tempo todo. Ter superpoderes traz redenção, sensação de que somos mais (e somos!), que podemos voar (e podemos!): a imaginação é nosso verdadeiro superpoder”, diz Luiz Scocca.
A criança gosta de se projetar no modelo de coragem e bondade dos super-heróis. Além disso, ser o herói da sua própria história é importante para ela. E isso não acontece necessariamente só com os super-heróis, como o Homem Aranha: hoje, a princesa não espera mais o príncipe encantado, ela constrói seu próprio castelo, ou seja, também é a heroína.
Situações de vilões X mocinhos, presentes nas histórias com heróis, também são importantes para mostrar aos pequenos o conceito do bem X mal. Nos contos de fadas, por exemplo, a bondade e a maldade são bastante radicais para que eles entendam a existência dos dois lados. Mas, conforme crescem, é importante que compreendam (com ajuda dos pais) que ninguém é 100% bom ou mau. Hoje, há histórias que mostram, por exemplo, a versão do vilão e os motivos que o levaram a ser quem ele se tornou.
Como você viu, há mais superpoderes na imaginação do que sonha nossa vã filosofia.
Para todas as idades
Se a fantasia é tão valiosa na nossa vida, por que paramos (ou diminuímos) de brincar, imaginar, criar, se permitir conforme o tempo passa? Porque vamos nos desconectando do mundo mágico. Assim, nunca devemos pensar que imaginação e fantasia são “coisas de criança”, já que tudo isso nos ajuda a solucionar problemas no dia a dia.
“Antropólogos dizem que o homem é o ser mais brincante de todos e que ele brinca para sobreviver. Faz todo sentido, porque tal atividade diminui o cortisol (hormônio ligado ao estresse) e aumenta a serotonina (hormônio que dá sensação de bem-estar). Em momentos desafiadores como o que vivemos, o adulto se regenera ‘brincando’, tem a chance de se descolar da realidade, abrindo espaço para processos internos de conexão e até de autoconhecimento”, afirma a designer Estéfi Machado, especialista no brincar e colunista da CRESCER.
from Crescer https://revistacrescer.globo.com/Educacao-Comportamento/noticia/2021/03/o-poder-da-imaginacao-o-que-seu-filho-ganha-quando-pode-recorrer-fantasia-e-como-voce-pode-estimula-lo-fazer-isso.html