Na parede do corredor, temos uma coleção de fotos enquadradas. Passo por ali na correria dos dias e, invariavelmente, meu olhar escolhe uma delas. É uma foto em que o pequeno Nino, de gorro e óculos, faz a sua lição, de lápis na mão. Atravessando o primeiro plano, as mãos do Luiz o ajudam com uma borracha. A foto é linda. Emoldurei e coloquei na parede com ternura.
O tempo foi passando e fui me surpreendendo com outros sentimentos que a foto passou a me provocar. A difícil vida escolar do pequeno, sua negação ao método de aprendizado e nossa imensa batalha para que ele pudesse entender a necessidade de tudo aquilo chegaram a me fazer pensar em tirar a tal foto da parede. Não tirei. Ficou lá, emblema de nossa luta.
Nino agora está na faculdade, adorando o que aprende. Vem tendo bom desempenho e parece ter escolhido a carreira certa. Os dias correram, as coisas foram se ajeitando, mas eu continuo sentindo a fisgada quando passo apressada do quarto para a sala, da sala para o quarto.
O que me fere? Dia desses, parei em frente à foto. A beleza ainda era maior do que a dor. No entanto, entendi o incômodo. O desconforto vem da borracha. Do braço do Luiz em movimento, apagando o erro. O espinho da foto é que registrei justo o momento mais triste do aprendizado, o erro. A tristeza de ver o que foi feito sumir na poeira da borracha para ter de ser feito de novo naquela luz triste de fim de tarde. A tarefa que precisa ser entregue no dia seguinte apesar do cansaço, o suco derramado no tapete, a garrafa de leite vazia na geladeira, a parte chata da vida, a preguiça de enfrentar o que precisa ser enfrentado. Sem querer, e cheia de amor, eu tinha registrado a vida dura. Um clique preciso, onde meu pequeno era o modelo e a vítima do empenho que se precisa para viver.
Decidi deixar a foto ali para que ela possa continuar a me incomodar com sua beleza, afinal, ela faz parte da nossa história. Decidi deixar a foto ali para me lembrar que tudo passa e que novos problemas sempre aparecem. O que sumiu na poeira da borracha deixará sua marca, mesmo depois de refeito. E assim é. Viver é exercício. Viver é refazer diariamente. Refazer--se. E dói mesmo, de verdade. Mas também alegra e glorifica.
Se pudesse voltar no tempo, teria falado mais sobre isso com meus pequenos. Da dor e da alegria correndo juntas. Mas eu mesma ainda não o sabia como sei agora. Quando estamos enfiados nos dias, amarrando cadarços e limpando bumbuns, enquanto o celular toca mais uma vez do escritório ou a panela queima na cozinha, vamos deixando que a força das pequenas falências nos roube a visão aérea da vida. Nossa lente de aumento sobre os dias cristaliza os erros, nos fazendo ignorar a mobilidade da vida. A vida é muito mais filme que foto. Vou deixar a foto ali sabendo que é só o fotograma de uma intensa e diversa película.
Denise Fraga é atriz, casada com o diretor Luiz Villaça e mãe de Nino, 20 anos, e Pedro, 18
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