Friday, October 2, 2020

Mariana du Bois: "De uma rotina que se repete, mais ou menos assim"

Mariana du Bois (Foto: Arquivo Pessoal)

 

Estou há algumas meias horas fechada no quarto, na frente do computador, com uma tela em branco aberta, lendo, procurando por lampejos, epifanias ou algum sopro modesto sob minha mente turva de às vezes.

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E olha que hoje consegui meditar.

Corta.

Entra Francisca:
- Mamãe, estou ouvindo a professora, mas a tela saiu!

Li outro dia que Clarice Lispector escrevia com sua maquina de datilografar no colo, diante de seus filhos, enquanto brincavam ao seu redor, porque não queria ser a mãe que ficava fechada num cômodo enquanto eles existiam.

Soco no estômago. Adiantei uma justificativa; coisa de gênio.

Fora isso, Clarice, nunca enfrentou uma epidemia com isolamento social de 6 meses e tanto.
Iniciei uma pesquisa para validar minha afirmativa, encontrei a informação de que ela foi assistente voluntária junto ao corpo de enfermagem da Força Expedicionária Brasileira na Itália durante a Segunda Guerra Mundial.

Corta.

Deixo Zeca entrar e "existir" em meu cômodo.

Coloco fones de ouvido e música clássica para emudecer a narração da partida de futebol do dia; XV de Piracicaba x São Caetano.

- Quem é o time de camiseta preta, mamãe?

Faz tempo que me inquieto em preencher espaços de formulários que questionam qual a minha ocupação.

Metáfora perfeita para questionamentos corriqueiros azedados em sarcasmo e deboche.

Carrego uns enunciados digeridos de mulher mãe, algo como vômitos engolidos.

O que eu faço?

Eu me ocupo em estar por perto das minhas crianças, em me doar. Faço fazer a diferença.
Profissional autônoma tentando se reinventar, submissa a uma rotina que me robotiza e aprisiona.

Pairando entre o nobre e o ordinário, eu me ocupo com o ralo entupido do box e com o aproveitamento de filho no homeschooling.

Transito entre as compras infindáveis no supermercado e tratar de olho-de-peixe na sola do pé de criança.

Me ocupo com a alimentação saudável deles e fiscalizar tempo diante de tablets. Eu cuido dos aparelhos contra pernilongos e de ler livro pra filho. Das atividades físicas e da oração.
Falo com a pediatra e com o professor de futebol.

Flutuo numa miscelânea de afazeres domésticos, incorpóreos e espirituais.

E entre todos os espaços pra ocupar, me refugio numas brechas pra me empenhar em produzir, trabalhar e ganhar dinheiro.

Foram muitas as vezes que meus filhos colocaram propósito nos meus dias. Acontece que chegou um momento em que tudo o que eu entendia sobre mim, perdeu o tônus perto de quem eu era para eles.

Lembro que eu gostava de pensar que eu sabia o que queria.

E o ser mãe, ser esposa, virou um gigante dominador que encolheu minha existência.
Não importa se existem culpados. Só importa não adiar a inteireza da minha felicidade para o futuro dos meus filhos.

Corta.

Entra Francisca:
-Mamãe, preciso de uma caixa pra fazer uma maquete na aula de arte.

Fato. Mãe ativa dentro de casa é giro no looping sem cessar, é carga mental com gravidade que as vezes nos entorta, corrompe acessos ao nosso íntimo, à lembrança de como tocam as notas todas que nos compõe.

Cuidar de pagar boleto é encargo pesado sim. Tomar conta de todo os espaços que o dinheiro não preenche, também.

Corta.

Entra Zeca:
-Mamãe, quero bisnaguinha com requeijão. Duas!

Trabalhar muito é trabalhar amplo.

Não importa se existe remuneração no fim da jornada.

Ninguém é patrão de ninguém dentro de um casamento saudável, qualquer que seja o formato.

Penso na casa, na família, como uma empresa de todos os membros, conduzida pelos tutores sócios, onde cada um oferece seu melhor. Todos ganhando juntos, vingando juntos. Num arranjo bonito.

Ninguém feliz em detrimento de ninguém. Todos quites. Coexistindo na totalidade de suas peles. Tenho fé de que existe uma maturidade que banca essa utopia.

Sempre soube a importância dos espaços todos que preencho na rotina da minha família, mas, não menos importante são as frestas que ando tentando ampliar pra eu passar com minha essência e as minhas asas. 

Que minha herança para meus filhos seja a luta para aprenderem a difícil arte de procurar pela própria felicidade e não vender a alma no cotidiano.

Corta.

Entra Francisca;

-Não estou conseguindo mais ouvir a Miss Bunny, mamãe!

 

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from Crescer https://revistacrescer.globo.com/Colunistas/Mariana-du-Bois-Agora-eu-era-a-mae/noticia/2020/10/mariana-du-bois-de-uma-rotina-que-se-repete-mais-ou-menos-assim.html

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