Friday, October 12, 2018

Está grávida? Então aproveita para dormir enquanto pode!

Natalia Ariede (Foto: Reprodução Instagram)

 

Aproveita!! Assim, num tom entre o conselho e o modo imperativo.
E seguido por uma variedade de complementos:
- Aproveita... pra ver filme de adulto, porque depois, nunca mais!
- ... pra namorar, porque ainda dá. Já depois...
- ... pra se arrumar, fazer unha, ir ao cabeleireiro, porque logo mais, nem pra lavar o cabelo vai ter tempo!
- ... pra viajar.
- ...pra dormir enquanto você pode.
Quase todo mundo que conversa comigo ultimamente, solta pelo menos uma frase que começa com esse verbo. Às vezes, até sem complemento mesmo, porque não precisa dizer mais nada.

+ "Na gravidez a gente esquece tudo e passa a acreditar até naquilo que nunca ouviu falar"

Tá tudo subentendido:
- Aproveita (porque sua vida vai, tipo... meio que acabar mesmo).
Sempre que ouço uma frase começando assim - com esse verbo que fica no meio do caminho entre a sugestão e um aviso – também me sinto dividida entre dois sentimentos aparentemente incompatíveis: gratidão e tédio.
O primeiro, óbvio, acompanha (quase) todo tipo de conselho. (Quase) ninguém se daria o trabalho de compartilhar uma sabedoria adquirida com a própria experiência desejando o mal do outro. Quero acreditar que a intenção de qualquer conselheiro é sempre a melhor possível.
Mas, aí, vem aquela pitada incontrolável – pelo menos pra mim – de tédio. Vou tentar traduzir em palavras o que está por trás desse sentimento, até mesmo pra me entender melhor... Vamos lá. Pensem comigo: se eu dormir muito agora, durante a gravidez, algo como 3 ou 4 horas numa soneca da tarde (como se a rotina de grávida trabalhadora permitisse isso..) ou se estender o sono da noite para 10, 12, 15 horas... isso seria “aproveitar pra dormir muito agora”, certo? Agora, a pergunta é: fazendo assim, vou ficar com saldo positivo de sono? Vai suprir a privação de sono que está por vir? Óbvio que não.

+ O exame apareceu 1309 ui/l. É, sim, positivo. Estou grávida
Esse raciocínio vale para praticamente todos os conselhos que dados a grávidas e que começam com o imperativo “aproveita”. Fazer algo excessivamente agora não vai compensar a abstinência daquilo lá adiante. E, convenhamos, tá tudo bem. Quem planejou engravidar e quem não planejou mas já se conscientizou do que está rolando, sabe da mudança que significa na vida. Pelo menos, deveria estar ciente. Se ainda não está, vai sentir por conta própria quando a hora chegar. E de nada adianta antecipar situações como essas. Uma tortura que gera ansiedade em quem já tem receios de sobra. E nem é certeza que tudo vai acontecer pra uma família exatamente da mesma forma como aconteceu pra outra.
E “ai” da grávida de primeira viagem que se atrever a responder algo como:
- Mas eu pretendo continuar viajando. Ou indo ao cinema. Ou namorando. Me cuidando, também.
A próxima – e provavelmente a última – frase do diálogo vai ser da conselheira ou conselheiro:
- Ah, vamos ver! Vai achando que é simples assim... Mais pra frente, a gente conversa de novo sobre isso, aí você me conta se conseguiu. (leia essa última palavra em tom de ironia). 
E aí que entra um outro ponto: fico me questionando até que ponto esses conselhos iniciados com “aproveita” vem mesmo com a intenção de ajudar a ouvinte barriguda. Ou se estão mais pra um desabafo. Uma confissão de fracasso. E uma torcida secreta pra que a futura mamãe seja, e breve, também imperfeita, insatisfeita, cansada e cheia de conflitos. Aliás, como todas seremos, muito provavelmente. Mas cada uma ao seu tempo, à sua maneira.

+ 20 semanas de gestação, pés inchados e muitas outras mudanças
Todos nós, em algum momento, provavelmente já assumimos esse papel de mestre detentor de uma sabedoria especial, mas também específica, baseada em uma experiência absolutamente pessoal. E única. E, por isso mesmo, intransferível. Será, então, que vale sempre a pena passar pra frente? Penso que é uma reflexão que devemos fazer. Ainda mais se a pessoa que vai receber a tal informação é uma grávida estreante nessa missão. 
Eu, que estou exatamente agora nesse papel, me sinto muito mais encorajada quando ouço um relato sincero, mas não ameaçador, sem aquele fatalismo de que “foi assim comigo, então vai ser assim com você porque não tem outro jeito de ser. Conforme-se.”
Melhor ainda se o raciocínio vier seguido por uma sugestão implícita - e não autoritária - do tipo “eu, particularmente, faria assim de novo, porque pra mim deu certo” ou “faria diferente, diante da experiência que tenho agora.”
E o fechamento, digno de chave de ouro, é: “mas cada um é cada um. Cada mãe é uma. Cada bebê é único. E você vai descobrir o que funciona melhor pra você.” Pode parecer vago, mas transfere uma carga boa de energia e coragem, tão essenciais nesse momento. 
Se você que me lê é, como eu, nesse exato momento, aspirante a mamãe de primeira viagem, sugiro que, ao ouvir uma frase dessas, se dê o trabalho de filtrar, analisar qual é o contexto de onde ela vem, descarte o que vier carregado de frustração e cansaço alheios, e se permita absorver o que pode efetivamente ser útil. Jogue fora o que só serve pra gerar inquietude.
E se lembre de tudo isso quando já tiver embarcado e for você a mamãe “experiente” a aconselhar as futuras passageiras dessa viagem.
São as conclusões a que consigo chegar depois de tanto ouvir e pensar a respeito dos conselhos que rondam gestação e maternidade.
Sim, tenho consciência e admito que meu texto tem ele próprio um quê de conselho.
Mas juro que cuidei pra que nenhuma dessas últimas frases começasse com o verbo “aproveita”.

 

 



from Crescer https://revistacrescer.globo.com/Colunistas/Natalia-Ariede-A-noticia-da-vida/noticia/2018/10/esta-gravida-entao-aproveita-para-dormir-enquanto-pode.html

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