Tuesday, December 22, 2020

Alexandre Coimbra Amaral: "Não, filho, este ano não foi perdido"

Não, esse ano não foi perdido (Foto: Foto de Ketut Subiyanto no Pexels)

 

Eu prometo que não vou te dizer que este ano foi perdido, meu filho. Quando tudo isso começou, eu nem sabia que o calendário inteiro teria de usar máscara e álcool em gel. Eu fiz previsões absurdas, neguei e me desesperei, inclusive. Você, como ficou em casa, viu e ouviu isso tudo. Sentiu o peso dos adultos cuidarem da sua saúde e tentarem preservar ao máximo a de todos os familiares. Mas também tivemos de cuidar dos empregos, das profissões, das contas em atraso, dos medos, das raivas, das tristezas.

 

Filho, você precisou se despedir do nada de seus amigos, professoras e espaços escolares. A cantina virou aquele pão com manteiga rapidinho entre uma aula e outra no computador. Você precisou aprender a ver as pessoas pela tela de computador, sem abraçar depois de uma corrida. Teve de trocar o suor pela lágrima, ao passar meses sem a turma gritando e brincando de bicicleta. Teve de assistir às aulas sem vontade, por desânimo de não ter como virar para trás e conversar um pouquinho com o colega, enquanto a professora apagava o quadro.

Eu vi você sofrendo e se levantando. Fomos felizes demais também. Estivemos mais tempo juntos, o suficiente para você imaginar que talvez não quisesse que a pandemia fosse embora. Que confuso isso, querer que o mundo permanecesse ao contrário! Isso é o que a vida faz com a gente em momentos de mudança: ao mesmo tempo, excitação e tristeza, alegria e luto, festa e despedida. Nós nos despedimos de tanta gente que se foi... choramos juntos, aprendemos, inclusive, que chorar junto nos faz mais unidos e sentimos o amor fluir mais forte entre nós.

“Um ano de uma criança é feito de descoberta, de aventura, de queda, de tombo e curativo”
 

Eu aprendi que gosto demais de parar meu trabalho e encontrar você ao lado, imediatamente, sem ter de pegar trânsito. Eu levei uns bons sustos, mas foi muito fofo você entrar nas reuniões e dar oi para o meu chefe, me roubar um beijo e pedir para eu ler uma revista com você. Passamos dias e dias discutindo o quanto você e eu precisávamos de uma pausa das telas para ganhar oxigênio na vida real e, assim, dar conta de mais e mais reuniões virtuais.

Ainda estamos no meio disso. Não posso lhe prometer quando se findará, mas só quero dizer que aquela frase ‘esse é um ano perdido’ é uma bobagem minha. Sabe, filho, eu aprendi a contar os anos das crianças por meio de desempenhos escolares, você acredita? Acredita que eu, grande assim, ainda me dou ao desplante de ter sobras desse tipo de pensamento? Desculpe. Um ano de uma criança é feito de descoberta, de aventura, de queda, de tombo e curativo. Machucado com esparadrapo, vontade de recomeçar a correr e viver mesmo com o corpo e a alma com uns arranhões. Assim é o ano de uma criança, e assim foi o meu ano também. Por isso, filho, vou te dizer: valeu demais. Vamos juntos em mais um tempo estranho, mas certos de que o ano foi vencido. E você foi uma das razões do meu coração senti-lo assim. Feliz ano novo, meu filho, com meus olhos cheios de água doce de esperança em nós e na vida.

Alexandre Coimbra Amaral (Foto: Arquivo pessoal)

 

Alexandre Coimbra Amaral É mestre em psicologia pela PUC do Chile, palestrante, escritor, terapeuta familiar e de casais. Pai de Luã, 13, Ravi, 11, e Gael, 7. Psicólogo do programa Encontro com Fátima Bernardes, da Rede Globo.



from Crescer https://revistacrescer.globo.com/Colunistas/Alexandre-Coimbra-Amaral-A-humanidade-em-nos/noticia/2020/12/alexandre-coimbra-amaral-nao-filho-este-ano-nao-foi-perdido.html