“Quando a gente abre as janelas, não tem um barulho de vida sequer. Não existem flores, não existem cores e até os pássaros já nos deixaram”. Esse é um dos trechos de ‘O Diário de Myriam’ (Editora Dark Side, Preço R$39,90), livro que traz as memórias de uma menina durante a guerra civil que destruiu seu país. Myriam Rawick nasceu e cresceu em Alepo, na Síria, mas precisou deixar sua casa depois dos bombardeios e tiroteios que abalam o país desde 2011. De um lado, os rebeldes, do outro, o presidente Bashar al Assad e, no meio, milhões de civis que se transformaram em refugiados.
Com o auxílio do jornalista de guerra francês, Philippe Lobjois, Myriam transformou sua experiência um livro que relata da perspectiva de uma criança, os horrores da guerra. Apesar de o tema ser duro, Myriam conta a história de maneira leve e adequada para crianças a partir dos 10 anos.
Em entrevista exclusiva à CRESCER, Philippe Lobjois fala sobre o tempo que passou na Síria e de sua relação com essa menina tão especial. Confira:
Como foi o tempo que passou em Aleppo?
Quando cheguei a cidade já estava destruída e cerca de 70% dos prédios bombardeados. Era dezembro de 2016 e estava frio. Fiquei lá por três meses. Não havia eletricidade, aquecimento e a água era escassa. Havia apenas um hotel não muito distante da linha de batalha. Era absolutamente horrível, mas o único lugar possível para se hospedar. É quase impossível o regime conceder visto para jornalistas então entrei no país registrado como ajuda humanitária. Sempre encontrava pessoas nas ruas procurando parentes desaparecidos, refugiados tentando deixar a cidade, grupos imensos de desabrigados, tudo muito caótico. Eu andava diariamente pela cidade procurando testemunhos, mas não sabia exatamente o que iria encontrar.
Do período em que esteve na Síria, qual a lembrança que mais te marcou?
Houve momento muito duro. Era Natal e fui visitar os hospitais de Alepo para entregar presentes com outros membros da associação do Irmão Georges. Nos dias anteriores, houvera uma série de bombardeiros e confrontos armados. Quando cheguei vi um garotinho, de cerca de 10 anos, deitado em uma cama. Ele tinha perdido vários parentes, estava coberto de poeira, pedacinhos de concreto e sangue porque uma bomba tinha explodido em seu apartamento, e chamava pelo pai. Entregamos um brinquedo e ele não teve reação nenhuma. Seu rosto estava sem expressão. Sem sorrir, sem nem seque olhar direito para gente. Ele simplesmente ficou deitado na cama. Foi terrível. Ele ainda acreditava que o pai estava vivo, mas os médicos nos contaram que ele já havia falecido, mas ainda não tinham contado para o menino por causa do estado em que estava. Foi horrível e pior ainda saber que existem milhares de histórias assim.
Como você conheceu Myriam?
Demorou um mês desde minha chegada até que eu conhecesse Myriam e sua mãe. Primeiro, fiz uma entrevista com um homem conhecido como Irmão George, chefe de uma congregação religiosa que faz trabalhos de caridade em Aleppo. Os islâmicos estavam cercando cerca de 70% da cidade e o regime de Bashar controlava os outros 30%. Quando encontrei com Irmão George, nós discutimos a situação política e humanitária da região e ele me contou sobre o bairro cristão Jabal Sayid, de Aleppo, que havia sido destruído por bombardeios, desalojando centenas de cristãos que pediam ajuda para ele. Não sabia na época, mas era o bairro em que Myriam e sua família viviam antes da guerra. Ele disse que eu poderia conversar com alguns dos refugiados que trabalhavam com ele e foi então que conheci Antonia, mãe de Myriam, dando aulas para órfãos e crianças desabrigadas. Ela queria muito falar da situação, contar sua história e me disse que tinha duas filhas, Joelle e Myriam [hoje com 10 e 14, respectivamente]. Começamos a nos encontrar, ela me convidou para conhecer o apartamento minúsculo em que vivia e foi aí que descobri o caderninho em que Myriam registrava suas memórias desde os seis anos de idade.
Como surgiu a ideia de ajudá-la com o diário?
Quando comecei a conversar com Myriam e sua família, percebi que eles se sentiam muito perdidos, esquecidos, abandonados e ignorados pelo resto do mundo. Por isso, eles se abriram facilmente e ficaram empolgados ao ver meu interesse em contar a história deles. Não só a família de Myriam, mas os cristãos de Aleppo. Eles estão sendo expulsos de suas casas e ninguém falou disso. Eles gostaram de poder falar sobre o que viveram e sofreram. Myriam fala apenas árabe, apesar de estar aprendendo francês, então o Irmão Georges traduziu a maioria de nossas conversas. Nelas, dei algumas instruções para Myriam sobre como seguir com seu diário, exercendo um papel de editor. Expliquei que seria importante se ela continuasse com as anotações diárias, e conforme ia lendo o que ela escrevia, fui chamando sua atenção para coisas que o resto do mundo não sabia e que ela poderia explorar mais. Foi assim que surgiu o livro.
A vontade que Myriam tem de continuar estudando é muito comovente no livro. Que papel a escola ainda tem na vida das crianças sírias?
A Myriam realmente quis continuar com a escola e muitas outras crianças fizeram o mesmo. O regime tentou, apesar da guerra civil, manter a vida o mais normal possível. O governo continuou pagando professores e as crianças ainda tem provas, o que para mim foi muito surpreendente porque já estive em vários países em guerra e nunca vi algo parecido em relação a educação em nenhum outro lugar do mundo. Nos outros lugares não havia nada que fizesse as crianças lembrarem do que era sua vida escolar antes da guerra. Simplesmente não existia mais nada.
Uma das primeiras coisas que a mãe de Myriam me mostrou, muito orgulhosa, foi o boletim da filha onde estava escrito que ela não perdeu um dia sequer de aula no ano letivo. Fiquei muito impressionado. Com a quantidade de bombardeiros é incrível pensar que as crianças saem de casa para ir às escolas. Myriam ia a pé até a escola. Acompanhei-a no trajeto algumas veze, era uma distância de cerca de 2 km, e ela fazia isso todos os dias mesmo com o risco de bombardeios ou balas perdidas. Nunca vi algo parecido na minha vida.
Você ainda mantém contato com Myriam?
Sim, ela ainda mora na Síria, mas agora está em uma região que já tem água encanada e eletricidade. Ela me visitou em Paris no ano passado. A maioria das vezes nos comunicamos através do Irmão Georges e vou contando para ela tudo sobre o livro. Ela até gravou um vídeo de agradecimento para as crianças de uma escola pública de Osasco que pediram a tradução do livro do francês para o português.
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