Monday, January 11, 2021

"Ensinar a gentileza a uma criança é hoje tarefa ainda mais árdua", diz Denise Fraga

restaurante; mãe; família (Foto: Thinkstock)

 

Estávamos num restaurante, e o Pedro devia ter 12 ou 13 anos. O garçom veio tirar o pedido. Pedro esperou o moço sair e me perguntou:
— Mamãe, por que você é falsa com o garçom?
— Pedro! Eu não sou falsa!
— É, sim. Você até muda a voz – e me imitou fazendo uma vozinha: ‘você pode me trazer um refrigerante, por favor?’.
— Eu não sou falsa, eu sou gentil.
Até hoje, temos um divertido embate sobre os limites entre a falsidade e a gentileza. Pedro não sorri ao tirar fotos. Eu, sim. Pedro tem um ouvido sensível para a afetação hipócrita comum aos bons costumes – um ligeiro tom a mais e ele já lança a boa intenção alheia na vala comum da hipocrisia. E eu sigo preferindo a gentileza, ainda que afetada, à grosseria autêntica, tão valorizada em nossos dias. Mas a gentileza requer mesmo um verniz, e talvez ele esteja reluzindo demais nesses tempos pragmáticos. Há que se ter cuidado. Outro dia, ouvi num filme um diálogo muito curioso. Um escritor chega em casa e dá à mulher a péssima notícia de que seu livro não será mais publicado. Ela olha para ele sem expressão, se vira e sai. Ele diz:
— Você ouviu o que eu disse?
— Ouvi. Quer que eu faça o quê?
— Demonstre. 
— O quê?
— Solidariedade.

 

“Somos pobres aparelhos de 110 ligados no 220,
sem poder queimar”
 

Acho curioso ela achar que não pode dizer nada. Se não tenho como agir, de que adianta eu falar? Muito, eu diria. Ensinar a gentileza a uma criança é hoje tarefa ainda mais árdua. Você com certeza ouvirá um ‘não precisa’ logo de cara. Dá para entender.
Sinto que estamos sendo reformatados pela vida virtual. Nossas telas nos deram a possibilidade de agir sem a necessidade de reverberar e responder na hora que quisermos, sem ver a pessoa com a qual estamos falando. Ver e ouvir vídeos e áudios são ações que têm destreinado a nossa capacidade de reverberar, de responder com um sorriso, de agradecer, de ouvir de verdade, de se comprometer com o interlocutor. Além do esconderijo da luz azul, a vida digital também nos impôs uma velocidade estonteante que vem comprometendo nossa gentileza e educação. Precisamos mesmo ter cuidado para não acabar concordando com o ‘não precisa’. No ciclone dos dias, a gentileza pode mesmo parecer perda de tempo. Somos pobres aparelhos de 110 ligados no 220, sem poder queimar. Esquecer de segurar a porta do elevador ou de agradecer pode virar seu novo modo de agir imposto pela forma com que você agiu o dia inteiro diante das telas. E você vai se transformando num humano online – offline.

 

Aquele que, mesmo sem sua tela na frente, continua agindo sem reverberar. E adeus, gentileza.
Ter uma criança por perto para ensinar gentileza é uma batalha preciosa. Uma oportunidade para lembrar de quem podemos ser. Quando ouvir o ‘não precisa’ vindo dela, lembre-se: precisa. Ainda que a ela pareça falsidade, insista. Se há coisa de que estamos realmente precisados é de gentileza. Dela e de suas irmãs delicadeza e sutileza. E talvez tenhamos até de ser pouco gentis para lutar por elas.

Denise Fraga (Foto: Cauê Moreno/Editora Globo)

 

Denise fraga é atriz, casada com o diretor Luiz Villaça e mãe de Nino, 23 anos, e Pedro, 21



from Crescer https://revistacrescer.globo.com/Colunistas/Denise-Fraga/noticia/2021/01/ensinar-gentileza-uma-crianca-e-hoje-tarefa-ainda-mais-ardua-diz-denise-fraga.html

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