Estávamos num restaurante, e o Pedro devia ter 12 ou 13 anos. O garçom veio tirar o pedido. Pedro esperou o moço sair e me perguntou:
— Mamãe, por que você é falsa com o garçom?
— Pedro! Eu não sou falsa!
— É, sim. Você até muda a voz – e me imitou fazendo uma vozinha: ‘você pode me trazer um refrigerante, por favor?’.
— Eu não sou falsa, eu sou gentil.
Até hoje, temos um divertido embate sobre os limites entre a falsidade e a gentileza. Pedro não sorri ao tirar fotos. Eu, sim. Pedro tem um ouvido sensível para a afetação hipócrita comum aos bons costumes – um ligeiro tom a mais e ele já lança a boa intenção alheia na vala comum da hipocrisia. E eu sigo preferindo a gentileza, ainda que afetada, à grosseria autêntica, tão valorizada em nossos dias. Mas a gentileza requer mesmo um verniz, e talvez ele esteja reluzindo demais nesses tempos pragmáticos. Há que se ter cuidado. Outro dia, ouvi num filme um diálogo muito curioso. Um escritor chega em casa e dá à mulher a péssima notícia de que seu livro não será mais publicado. Ela olha para ele sem expressão, se vira e sai. Ele diz:
— Você ouviu o que eu disse?
— Ouvi. Quer que eu faça o quê?
— Demonstre.
— O quê?
— Solidariedade.
Acho curioso ela achar que não pode dizer nada. Se não tenho como agir, de que adianta eu falar? Muito, eu diria. Ensinar a gentileza a uma criança é hoje tarefa ainda mais árdua. Você com certeza ouvirá um ‘não precisa’ logo de cara. Dá para entender.
Sinto que estamos sendo reformatados pela vida virtual. Nossas telas nos deram a possibilidade de agir sem a necessidade de reverberar e responder na hora que quisermos, sem ver a pessoa com a qual estamos falando. Ver e ouvir vídeos e áudios são ações que têm destreinado a nossa capacidade de reverberar, de responder com um sorriso, de agradecer, de ouvir de verdade, de se comprometer com o interlocutor. Além do esconderijo da luz azul, a vida digital também nos impôs uma velocidade estonteante que vem comprometendo nossa gentileza e educação. Precisamos mesmo ter cuidado para não acabar concordando com o ‘não precisa’. No ciclone dos dias, a gentileza pode mesmo parecer perda de tempo. Somos pobres aparelhos de 110 ligados no 220, sem poder queimar. Esquecer de segurar a porta do elevador ou de agradecer pode virar seu novo modo de agir imposto pela forma com que você agiu o dia inteiro diante das telas. E você vai se transformando num humano online – offline.
Aquele que, mesmo sem sua tela na frente, continua agindo sem reverberar. E adeus, gentileza.
Ter uma criança por perto para ensinar gentileza é uma batalha preciosa. Uma oportunidade para lembrar de quem podemos ser. Quando ouvir o ‘não precisa’ vindo dela, lembre-se: precisa. Ainda que a ela pareça falsidade, insista. Se há coisa de que estamos realmente precisados é de gentileza. Dela e de suas irmãs delicadeza e sutileza. E talvez tenhamos até de ser pouco gentis para lutar por elas.
Denise fraga é atriz, casada com o diretor Luiz Villaça e mãe de Nino, 23 anos, e Pedro, 21
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