O que é felicidade? Para a antropóloga Mirian Goldenberg, 62, o conceito é bem diferente do que muita gente imagina, a princípio. Dinheiro, sucesso, prestígio, uma casa, um carro do ano, ter um corpo magro.. Parece até clichê dizer que a felicidade de verdade não está em nada disso, mas foi o que ela comprovou durante as pesquisas que fez com as pessoas para escrever o livro Liberdade, felicidade e f*da-se (Editora Planeta, R$ 35,90). “As pessoas se comparam às outras e ficam com uma expectativa irreal de felicidade, quando, na verdade, a experiência concreta de felicidade é bem mais simples”, diz. Em entrevista exclusiva à CRESCER, ela explica o motivo e conta como entender essa questão pode tornar a maternidade mais simples, além de ajudar os pais a criarem filhos mais felizes e seguros de si.
O que está por trás do conceito de felicidade? O que é felicidade, afinal?
No meu livro, Liberdade, felicidade e f*da-se, eu discuto exatamente a questão da felicidade. Eu pergunto, em primeiro lugar, “o que falta para você ser mais feliz?” E as pessoas dizem: dinheiro, sucesso, prestígio, casa, carro, viagens, ser magra… E sempre se comparam com outras pessoas que, supostamente, têm tudo aquilo que elas desejam. Mas quando eu pergunto em que momento do dia elas se sentem mais felizes, elas falam: “quando eu chego em casa, recebo um abraço gostoso dos meus filhos, um beijo do meu marido, dou uma caminhada na praia”. Então, o que elas me ensinaram é que felicidade está naquilo que a gente tem, que é mais precioso, insubstituível, está no mundo do afeto, do cotidiano, da casa. As pessoas se comparam com outras e ficam com uma expectativa irreal de felicidade. A experiência concreta de felicidade é muito simples e quando elas falam dessa experiência, não se comparam com ninguém. Isso que é o mais interessante. Então, eu diria que felicidade é o reconhecimento e a valorização daquilo que já se tem na própria vida e não aquilo que falta. É aquilo que é só nosso, insubstituível, o bem mais precioso - e que está no mundo do afeto.
Existe uma ilusão de que a felicidade é algo inatingível, um lugar onde vamos chegar e não um caminho...
Essa felicidade, concreta, cotidiana, incomparável, insubstituível é algo que as pessoas muitas vezes não valorizam, não enxergam, não reconhecem, não sentem. Elas ficam tão voltadas para aquilo que falta, que não conseguem reconhecer e valorizar aquilo que elas já têm. E que é o concreto. É o incomparável. Então, como enxergar isso? Simplesmente sentindo essa felicidade e percebendo que aquilo que falta não é tão fundamental assim. É uma ilusão. Para todo mundo falta alguma coisa, mas a felicidade não depende daquilo e sim do que se constrói no cotidiano, no mundo do afeto. É algo construído dentro da família, dos amigos, com os nossos projetos de vida, com os nossos momentos. Às vezes, até com a solidão, ouvindo uma música, lendo um bom livro. Alimentar esses momentos tão simples é fundamental para uma felicidade completa e insubstituível.
A maternidade é uma fase da vida que torna a felicidade mais difícil de alcançar, com cobranças, comparações, padrões?
Na nossa cultura, existe uma idealização da maternidade que provoca muita insatisfação, sim, porque há uma cobrança social que é interiorizada pelas mulheres e elas sentem uma enorme culpa por não conseguir corresponder. A mulher sofre muito porque quer ser a mãe ideal, mas, ao mesmo tempo, não pode deixar de ser mulher, de trabalhar, de se cuidar. O que as mulheres mais dizem para mim é que falta tempo, falta reconhecimento e falta liberdade porque esse ideal de maternidade é uma prisão e provoca muita insatisfação, muito sofrimento. Acho que o segredo é não idealizar. É ser a mãe possível, que cada uma consegue ser, sem culpa, sem sofrimento, sem cobrança e não aceitando essas expectativas sociais e, às vezes, familiares, de perfeição. Acho que assim as mulheres podem ser um pouco mais felizes na maternidade e também fora dela.
Há muito julgamento no mundo materno. Desde o tipo de parto até o tipo de disciplina que você aplica, passando pela amamentação x mamadeira, pela festa de aniversário ou pela escolha da escola. Como, afinal, conseguir saber o que é importante para você e para a sua família e dar um f*da-se em tudo?
Essas cobranças sociais sobre maternidade, sobre o que pode e o que não pode, o que deve e o que não deve, como fazer, como não fazer, muitas vezes vêm de pessoas muito próximas. Da mãe, da irmã, das amigas e também desses modelos que são exibidos em revistas, na televisão, na mídia, em geral. Acho que isso criou uma série de regras e comportamentos, muitas vezes, contraditórios, que aprisionam a mulher em muito sofrimento porque ela não consegue jamais. Nenhuma mulher consegue corresponder a esses modelos de perfeição do que é ser mãe. Então, aprender a seguir a própria vontade, o próprio desejo e a própria forma de ser mãe e ligar o botãozinho do foda-se para as cobranças excessivas é uma forma de se libertar desses modelos inatingíveis de ser mãe, de ser mulher, profissional, esposa, amiga, filha. As mulheres estão sofrendo muito, exaustas, deprimidas, insatisfeitas e infelizes por não conseguirem corresponder a esses padrões. E acho que a melhor forma de acabar com isso é não se comparar com os modelos, nem com as outras mulheres. É cada uma inventar a sua própria forma de ser mãe.
Como ensinar as crianças desde cedo a serem felizes e livres, sem serem egoístas?
Ser feliz, cuidar de você mesma, ter tempo para si não tem nada a ver com egoísmo, tem a ver com saúde, tem a ver com vida sobrevivência emocional, psicológica e eu diria até mesmo física porque, quando você não cuida de você e da própria felicidade, você não consegue fazer ninguém mais feliz. Todo mundo sofre junto com você. Acho que a grande questão é ensinar as crianças a serem mais livres, mais autênticas, mais verdadeiras, a se conectarem com a verdade delas, com um mundo também interior, que, hoje em dia, é tão pouco alimentado - e isso por pessoas de todas as idades, porque elas são tão conectadas com o exterior, com o consumo, a aparência, a exibição nas redes e fora delas, que quase ninguém se conecta mais com o mundo interior, da subjetividade, do desejo, da verdade. Isso é o que eu acho mais difícil, não só para as crianças, mas para todo mundo, para os adultos também. É se conectar com a própria verdade, com a possibilidade de ser você mesmo e não o que os outros querem que você seja, ou ser outra pessoa para agradar a todo mundo. Isso não é possível. Então, acho que ensinar a ser mais verdadeiro, autêntico e conectado com essa subjetividade é algo fundamental, ainda mais no mundo como o de hoje, que é só para fora.
Uma das fontes de infelicidade na maternidade é o famoso palpite. Quando todo mundo acha que sabe criar seu filho melhor que você e as pessoas dão aqueles conselhos que você não pediu ou apontam que a forma como você está fazendo está errada ou, pior ainda, passam por cima e tentam agir diferente com seus filhos quando você não está por perto. Como lidar com isso?
É muito difícil lidar com as cobranças, com os conselhos, com os julgamentos, com os preconceitos que existem sobre a maternidade. E o que eu acho mais difícil de entender é como as mulheres internalizam essas formas de ser mãe, como um tipo ideal de ser mãe, e cobram de outras mulheres o mesmo comportamento. Elas cobram muito como em que momento você deve ser mãe, como você deve ser mãe, como você deve lidar com seus filhos, se você não quer ser mãe, por que não quer ser mãe. Um dos capítulos do livro é exatamente sobre essas cobranças femininas, sobre um modelo de maternidade que só provoca sofrimento, insatisfação e infelicidade porque, para cada mulher, existe um jeito de ser mãe e ela nunca se sente adequada porque ela sempre ou se compara ou é cobrada para seguir outro tipo de modelo. É difícil lidar com isso porque envolve culpa, vergonha, inadequação, sentimento de que você não é uma boa mãe... É preciso ter consciência de que esse modelo é só um modelo e que nenhuma mãe consegue ser tão ideal e perfeita assim e seguir o próprio jeito de ser. Não é fácil porque tem que dizer muito ‘não’, muito ‘foda-se’ para o que os outros pensam, mas é a única forma de lidar com alegria e satisfação com o fato de ser mãe.
Muitas vezes, as mães se preocupam tanto em tudo o que precisam fazer para deixar seus filhos felizes e criá-los do “jeito certo” e se esquecem de serem felizes, elas mesmas. Por que isso acontece?
As mulheres não conseguem ser felizes porque vivemos em uma cultura que cobra demais, em que existem regras demais sobre ser mãe, mulher, magra, profissional, boa amante, esposa, filha. Elas cuidam de todo mundo e não têm tempo, nem o direito, de cuidar delas, da própria alegria, do próprio prazer, da própria saúde. Muitas mulheres me dizem: ‘Não tenho tempo para mim. Não tenho tempo para dormir. Não tenho tempo para tomar um banho com calma. Não tenho tempo para sair. Não tenho tempo de fazer as coisas que eu quero fazer’. É muito difícil viver nessa cultura e tentar corresponder a esse modelo se você não se libertar dele. Como? Tendo a compreensão de que essas expectativas culturais e familiares são excessivas e só provocam sofrimento. Nenhuma mulher vai conseguir ser minimamente feliz e realizada se tentar corresponder a todo esse padrão, se viver se comparando, invejando outras mulheres que aparentemente conseguem. Elas também não conseguem. Tem um capítulo do livro em que eu falo sobre isso, sobre a inveja e a comparação, como se as outras muheres conseguissem e nós não. E, não, elas também não conseguem. O primeiro passo é admitir que todas as mulheres estão sofrendo e não cobrar, nem de nós mesmas e nem das outras mulheres, que sigam modelos de ser mãe, de ser mulher, profissional, esposa.
Como reconhecer que você está tendo atitudes tóxicas, que podem estar prejudicando a liberdade e a felicidade do seu filho, embora a intenção, é claro, não seja essa?
Eu acho que existe sempre uma forma de perceber o que é controle e o que é cuidado. Uma coisa é você controlar seu filho para ele se adequar a um modelo e assim aprisioná-lo no que você considera certo e outra coisa é respeitar os desejos do filho e cuidar para que esses desejos não sejam negativos para a vida dele, que não corra perigo, não sofra violência, não sofra bullying. Uma coisa é querer controlar e dizer o que é certo e errado, mesmo que não seja assim para a outra pessoa, inclusive para os filhos. Outra é cuidar, se preocupar, prestar atenção. Percebo que existe pouca atenção, pouca escuta. É mais do que conversa, é uma escuta, uma observação. Vejo muitas mães imediatamente dizendo ‘isso é certo, isso é errado, não, não, não’ sem escutar, sem os filhos terminarem de dizer o que eles querem. Então, acho que ficar um pouco mais atento, observar mais, escutar mais, se conectar mais com a verdade da criança, em vez de dizer o que é certo e o que é errado ajuda.
E quando o seu filho é que ultrapassa seus limites e não deixa você ser feliz? Isso acontece com crianças? Ou só quando se tem filhos adultos mesmo?
Eu tenho muitos depoimentos de mulheres que estão sofrendo muito porque não sabem lidar com os filhos, não sabem como impor, não limites a eles, mas limites para elas também, porque elas querem tanto o reconhecimento, o cuidado, o amor, elas se preocupam tanto, que não conseguem enxergar o que é bom para eles e para elas. Tenho casos de mulheres que queriam muito ter filhos e hoje estão vivendo uma prisão porque não sabem como viver a vida delas. A vida delas é para os filhos e não para elas. Elas não têm mais o direito de viver, de ter tempo e dinheiro para elas. Acho que é um exercício permanente de descobrir o que é delas, o que é dos filhos, o que é dos maridos, o que é da casa e o que é de todo mundo ao mesmo tempo, mas sem abrir mão de cuidar delas, dos desejos delas, de ter tempo para elas, cuidar da saúde, cuidar da vida. Isso porque quando resumem a vida aos filhos, elas se mostram extremamente infelizes e sem saber o que fazer quando eles não correspondem a esse amor e a esse cuidado e quando eles vão seguir a própria vida. Acho que é um equilíbrio muito delicado de nunca abrir mão da sua própria vida, que não se resume aos filhos. Pode ser até que os filhos sejam o elemento mais importante da vida, mas não podem ser o único.
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