O Fortnite está longe de ser o mais violento jogo de vídeogame. Apesar de um de seus modos colocar os jogadores (online) lutando entre si para ver quem consegue ser o último sobrevivente, ele não tem aquele aspecto realista, com sangue e agonia. Mas mesmo assim, é considerado nocivo por algumas pessoas, "a porta de entrada para coisa mais pesadas" e, "a gente já sabe onde esse tipo de sequência vai parar", não é mesmo?
Será?
Eu entendo a preocupação de pais e mães com relação a exposição dos filhos a conteúdo violento, mas acho simplista a forma como se joga "a culpa" nos jogos. Não há dúvida que eles trazem o assunto para dentro de casa, mas isso não é necessariamente ruim. Aliás pode ser bem mais saudável do que diversas outras formas de apresentar o assunto aos nossos filhos.
Porque a violência está no mundo, está em nós, nos nossos familiares, conhecidos e vizinhos. Está na TV, no WhatsApp, na virulência com que as pessoas reagem ao que não concordam. A violência está no discurso de quem luta pela liberação das armas e pela perseguição deste ou daquele grupo. Ela está no home dos portais de notícia e pendurados em diversas revistas na banca de jornal. A violência está muitas vezes dentro de casa, na forma como pai ou mãe se enfurecem com os filhos ou na maneira como se tratam entre si. Está na forma como dirigimos e tiramos satisfação com quem nos atrapalha e na nossa falta de compreensão e empatia com o diferente.
Achemos bom ou não, a violência pertence ao nosso universo e lidar com ela é necessário. Nesse contexto, entender, se posicionar e cutucar opiniões éticas nas crianças é fundamental. E o Fortnite pode ser um bom ambiente para isso. É lúdico, mas suficientemente realista pra exigir um posicionamento. Eu diria que essa pode ser a porta de entrada para um assunto que é difícil mesmo de se colocar na mesa. Porque muitas vezes nos envergonhamos do nosso lado violento – e quando digo nosso, falo enquanto sociedade. Vamos fazendo vista grossa e fingindo que a violência é desimportante.
Grande erro. É preciso encarar de frente que a agressividade faz parte do ser humano e que não é incomum, que as pessoas canalizarem isso de maneira negativa. Podemos até discordar e (tentar) viver em bolhas onde o assunto só resvala pelas bordas, mas de qualquer forma somos feitos da mesma matéria que essas outras pessoas, vamos encontrar com elas num possível trabalho, numa fila ou na urna e é fundamental que saibamos nos posicionar, tanto pra não virar vítima, como para não escorregar para o lado de lá, achando, por exemplo, que só mais violência pode acabar com a violência.
"Ah, então você está dizendo que é super legal um jogo em que uns ficam atirando contra os outros?". Não é isso, mas acho que todos que estão ali estão cientes das regras e das condições do jogo, o que, ao mesmo tempo, garante um espaço onde não sobra para ninguém que não tinha nada a ver com o assunto. Porque, lembremos: nós vivemos num mundo onde crianças são baleadas na escola porque um helicóptero policial está atirando a esmo numa guerra que não tem nada a ver com a aula de matemática.
Tendo tudo isso em vista, acho que apenas proibir o Fortnite e achar que estamos blindados é uma tremenda inocência. Se queremos nos fechar para a violência vamos ter que nos desdobrar muito mais e, mesmo assim, talvez não seja possível.
Porque ela está entre nós e, sim, vamos ter que falar sobre o assunto.
Lia Bock é jornalista, escritora e mãe de 4 crianças. É autora do Meu primeiro livro, um diário inclusivo para registro dos primeiros anos de vida e do Manual do mimimi, com crônicas sobre relacionamento. Também é colunista do UOL e editora da Plataforma Hysteria. Na sua casa todos podem riscar a parede e comer a sobremesa na frente da TV
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