Um movimento que vem ganhando expressão e provocando debate no Brasil é a Educação Domiciliar. A ideia surge nos Estados Unidos nos anos 1970 e, por aqui, ganha maior expressão na década de 1990.
Para os defensores, os pais devem ensinar os conteúdos escolares aos filhos, na própria casa. O movimento parte de uma crítica à educação oferecida pelas instituições escolares e de insatisfações que abarcam desde o desenvolvimento intelectual, cognitivo, passando por conflitos vivenciados por crianças e jovens no interior da escola. Um desses conflitos, muito temido por alguns pais, é a questão de gênero. Ouvi de alguns pais que a escola incentiva as dúvidas sobre identidade de gênero e favorece opção por mudança de gênero.
Vamos separar os temas que provocam insatisfação dos pais, que se aliam a esse movimento pela desescolarização ou pela Educação Domiciliar.
Formação intelectual
A formação intelectual diz respeito ao ensino dos conteúdos científicos, filosóficos e artísticos que a escola tradicionalmente, desde sua origem, tem o compromisso de oferecer.
A primeira pergunta que surge tem a ver com o preparo dos pais para o desenvolvimento desses conteúdos. Em geral, os pais são formados em uma área ou duas, mas conhecer Biologia, Matemática, Química e Literatura, assim como História do Brasil e Filosofia em profundidade para auxiliar as pesquisas dos filhos exigiria um conhecimento tão amplo que, provavelmente, muitos deles precisariam recorrer a especialistas para darem conta da tarefa de educar em casa.
Na condição de orientadora de estudantes, tenho constatado que, mesmo com a ampla disponibilidade de informações sobre os conteúdos escolares na internet, ainda assim, é preciso um conjunto de informações sobre os temas para realizar buscas.
Sabemos que, hoje, a escola não é mais o lugar exclusivo das informações sobre ciência, filosofia, arte, religião. Podemos aprender com diferentes especialistas e não apenas com um professor ou professora. Mas o desenvolvimento intelectual exige mais que acesso à informação. Exige exercício de pensamento, de oralidade, de escrita, de debate, de construção de argumentos e, mais fundamental ainda, exige exercício de escuta dos argumentos alheios.
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É possível reunir todos esses exercícios em casa? Talvez. Mas o que posso afirmar com certeza é que seriam restritos. E para desenvolvê-los, muitos pais, talvez venham a recorrer a cursos, por exemplo. Ou seja, talvez busquem experiências mais coletivas como aquelas oferecidas pela educação escolar. Talvez.
Em síntese, informação podemos acessar – e acessamos – fora dos muros da escola. Mas formação intelectual efetiva acontece em encontros de reflexão e de encontros com pensamentos divergentes, desafiadores. Experiências escolares são boas para isso.
Educação de valores
Além da formação intelectual, a educação de valores tem sido alvo das críticas de pais que estão aderindo ao movimento de Educação Domiciliar.
Tradicionalmente, a família responde pela educação de valores de crianças e jovens. A partir do advento da escola, esse espaço social de encontros com famílias diferentes, surge a oportunidade de crianças e jovens entrarem em contato com hábitos, costumes, religiosidades, crenças e valores mais amplos sobre a vida do que aqueles defendidos por cada família.
Atualmente, no Brasil, a escola traz a oportunidade aos estudantes de conhecerem problemas sociais, diferenças de classe, de raça, de identidades de gênero. Muitos pais sentem-se ameaçados diante de um cenário que revela um universo de modos de vida muito diferentes da vida que desejam, sonham e buscam oferecer aos filhos.
Compreende-se assim que queiram proteger a própria família, isolando crianças e jovens em casa, ou na vizinhança ou nos círculos de parentesco e de mesma ideologia como igrejas e clubes. Paradoxalmente, ouvi de alguns adeptos da Educação Domiciliar que querem educar seus filhos para o mundo. Pergunto: qual mundo?
Sim, a formação de valores é compromisso das famílias. Famílias são competentes para reproduzir valores que admiram.
Mas para educar para o mundo e em uma perspectiva ética, somente o encontro com o diverso, com o diferente, pode ajudar. Somente o encontro com o mundo ensina a agir no mundo e para preservar o mundo.
A perspectiva ética é aquela segundo a qual um ser humano é capaz de negar seu interesse particular para atender o interesse de todos. É aquela que nos torna sensíveis às dores de outros seres humanos e nos mobiliza para a superação de dores, desigualdades, violências, explorações de seres humanos por seres humanos.
A Educação Domiciliar cria a redoma que impede crianças e jovens de exercitarem a experiência ética.
Para finalizar
Muitos adeptos da Educação Domiciliar argumentam que para garantir a formação intelectual, criarão grupos de cooperação com diferentes especialistas. E que para garantir socialização contam com vizinhança, clubes e igrejas. Pergunto: por que não lutarem para ocupar as escolas e contribuírem com a educação de mais gente? Por que não lutar para transformar a escola de sua comunidade em um espaço de exercício e preparo intelectual e ético?
Cabe perguntar ainda: qual o perfil sócio-econômico das famílias que aderem ao movimento de Educação Domiciliar? São famílias que não precisam ter pai e mãe trabalhando? São famílias que contam com tempo semanal para ensinar seus filhos e ainda buscar formas de garantir socialização?
A grande maioria da sociedade brasileira não consegue educar seus filhos. Muitos porque não completaram a própria escolarização. Muitos porque trabalham e os filhos ficam em escolas que exigem nossos movimentos para serem bons espaços de educar e de preparar no mundo, para o mundo, sensíveis à vida de todos.
Luiza Christov é professora do Instituto de Artes da UNESP e da Casa Tombada (SP) e fala sobre as experiências das crianças na vida escolar
from Crescer https://revistacrescer.globo.com/Colunistas/Luiza-Christov-Para-falar-de-educacao/noticia/2019/03/ensino-domiciliar-significado-e-consequencias.html